Por Maria Eugênia de Menezes*
Uma grande prancha de madeira, semelhante ao convés de um barco, é o lugar de onde a plateia assiste a Souvenir Asiático. A quinta produção do grupo colombiano Los Animistas, especializado em teatro de bonecos com atores, integra a programação do Mirada 2018 e vem debruçar-se sobre um dos temas mais complexos e urgentes da contemporaneidade: as migrações.
Ganhadora de um prêmio de criação dramatúrgica em seu país, a peça escrita por Martha Márquez não se detém apenas sobre as contradições dos fluxos migratórios da América Latina, mas expande esse cenário para situações e localidade diversas. Acomodado no centro da cena, o público será apresentado a breves esquetes que, gradativamente, virão a compor seis histórias independentes.
Dois homens africanos, que pretendem atravessar o mar para chegar à Europa, são detidos. Em uma carceragem, são chantageados a entregar seus pertences de valor, ameaçados e achacados por um guarda violento. Além do constrangimento físico, o policial tenta fazê-los desistir da empreitada com os poucos argumentos de que dispõe. No outro continente, ele lhes diz, os homens negros serão sempre vistos como diferentes, objetos de ódio. Mas eles não se importam com o ódio. Querem apenas conseguir trabalhar e comer.
Quando as luzes se acenderem do outro lado do espaço cênico, convidando os espectadores acompanhar outro enredo, veremos apenas a cabeça de um homem entre caixas de bananas. Emparedado pelas frutas, ele fala com seu companheiro (de quem só conheceremos a voz). Ambos estão em alto-mar, viajam como clandestinos em um navio de carga, ele tenta acalmá-lo do cansaço da viagem rememorando as famílias que deixaram para trás, mulheres e crianças. Algum humor entra para temperar a situação. Mas, assim como ocorre em todas as outras narrativas, o drama dessa era de êxodos é apresentado com cores fortes.
Um drama, cabe dizer, que não diz respeito apenas àqueles que partem, que estão no fluxo de um lugar ao outro, mas também aos que não se movem. Os imigrantes africanos que querem se lançar ao mar não encontram apenas o algoz violento, mas uma outra guarda, exaurida pelas mortes que já observou. Pessoas queimadas em barcos que pegaram fogo, crianças sem vida lançadas ao mar, corpos desfigurados. O quadro traçado é o de uma tragédia sem limites – pronta a alcançar a todos, inclusive quem se julga a salvo dela.
O terror que os imigrantes supostamente encontrariam nos países a que chegam – como os ataques xenófobos cada vez mais frequentes – ficam de fora de Souvenir Asiático. Não por acaso, as histórias se passam nas fronteiras, na iminência dessas novas realidades, com seres deslocados, presos em uma espécie de limbo – já partiram de seus lugares de origem, mas ainda não se estabeleceram em seus destinos.
Na encenação proposta pelo diretor Javier Gámez, dois atores (Juan Manuel Barona e Gina Jaimes) dividem espaço com dois titeriteiros (Henry López e Víctor Hernández). A presença constante dos bonecos, cujas feições e tamanho se assemelham a de seres humanos, soa como forma de sublinhar a condição de objeto a que parte dos personagens foi relegada. Para reforçar ainda mais essa percepção, há uma passagem na qual ator que interpreta o guarda de fronteira, perdido entre ordens daqueles que de fato controlam as políticas migratórias, comporta-se como uma marionete manipulada.
Além de materializar a percepção de que esses homens e mulheres são privados de sua humanidade, o teatro de animação também poderia criar uma bem-vinda camada de distanciamento entre o público e as situações propostas. Os bonecos, contudo, não conseguem amainar o apelo excessivamente melodramático de algumas tramas, como é o caso do diálogo entre uma mãe e sua filha, prestes a ser vendida a um homem rico. Como se a vinculação com o real, tão evidente, não bastasse, a autora cria monólogos (pretensamente líricos ou sentimentais) que prejudicam a dramaturgia. Mais bem-sucedidas nesse sentido são as intervenções audiovisuais, responsáveis por uma oportuna dose de nonsense.
*Maria Eugênia de Menezes é crítica teatral formada em jornalismo pela USP, editora do site Teatrojornal – Leituras de Cena e colaboradora do Estadão, jornal onde trabalhou de 2010 a 2016.