por amilton de azevedo*
Formada em Porto Alegre em plena ditadura militar, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz celebra seus 40 anos com trabalhos cada vez mais consolidados dentro de suas linhas de pesquisa. Dentro de sua vertente do Teatro de Rua, traz ao Mirada seu mais recente espetáculo: Caliban – A Tempestade de Augusto Boal (2017).
A criação coletiva da Tribo de Atuadores toma como ponto de partida não apenas o texto de Augusto Boal – escrito em 1974 como uma releitura crítica da obra shakespeariana de mesmo nome – mas fundamentalmente a afirmação do diretor, dramaturgo, ensaísta e teórico brasileiro de que “é preciso que fique claro que nós somos Caliban”.
No original shakesperiano talvez a grande figura a ser vista como exemplo a ser seguido era Próspero. Ao mesmo tempo Duque de Milão deposto por meio de traição e conhecedor de uma magia nobre, também é ele que através de seus conhecimentos leva civilidade à ilha antes governada pela bárbara feiticeira Sicorax. Ele é representado como um libertador daquele local. Por meio de seus artifícios e estratégias junto ao serviçal quase metafísico Ariel, cria a tempestade que naufraga o navio – fazendo com que a nobreza chegue à sua ilha – sendo o gatilho para o início e de quase todo o desenvolvimento do espetáculo.
Nesse sentido, a sabedoria de Próspero em sua condução da ação pode ser lida de forma metateatral; um dramaturgo e diretor em cena, em uma defesa da potência do fazer artístico quase como magia. No entanto, à luz de diversos pensadores pós-coloniais, a peça também traça uma alegoria clara ao pensamento e ao processo colonizador, onde um dito iluminado e superior europeu chega a um território novo de forma violenta e destrói a cultura local.
É por este prisma que Boal reconstrói o espetáculo, aplicando procedimentos diretos que, para além da colonização das Américas, elucidam os acontecimentos a partir da perspectiva da luta de classes.
Ariel, em sua versão, não é meramente um espírito elemental, mas a representação de uma classe burguesa local subserviente aos interesses estrangeiros e avesso ao esforço braçal – quando Sicorax governava, ele não era escravo como em Shakespeare, mas um trabalhador que produzia seu próprio alimento.
Assim, a ilha não era um local de barbárie, mas de cooperação horizontal. O paralelo com a narrativa eurocêntrica do chamado processo civilizatório da colonização é evidenciado pela dramaturgia de Boal e ainda mais explicitado na encenação do Ói Nóis Aqui Traveiz.
Em uma cena que não existia no texto de 1974, o aprisionamento de Sicorax expõe ainda o caráter racista do apagamento da cultura nativa em detrimento do estabelecimento de valores europeus. A feiticeira é representada por grandes bonecos de inspiração africana e indígena, pondo em xeque a valoração de uma magia superior, nobre, e outra inferior. Soma-se a essa leitura a própria forma de se referir às magias: branca é a boa; negra, a má.
O recorte racial dá o tom de Caliban; na potente Canção da Identidade, o coro de Calibans grita por sua existência enquanto, coreograficamente, remete a simbologia que representa os cultos de matriz africana e seus orixás. Vale ressaltar a vigorosa interpretação de Roberto Corbo no papel-título, que se destaca em um elenco de grande qualidade e extremamente equilibrado.
A potência do teatro de rua no trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz já havia resultado no premiado O Amargo Santo da Purificação (2009), que conta a história de Carlos Marighella. Na presente obra, verifica-se a eficácia das escolhas de figurinos e cenografia. Exuberantes, deixam claro para o público quem são – e a que classe pertencem – as personagens, além de trazerem um refinamento estético de muito efeito para o ambiente público. Na cenografia, a estrutura que serve primeiro de barco segue sendo ressignificada e criando níveis para compor de forma interessante o espaço cênico.
Dentro da apresentação em Santos no Mirada, no entanto, o bom público que aguardava a obra, que começou com certo atraso, acabou por se organizar em um local que não seria o centro da ação. Surpreendidos pela movimentação dos atores e da estrutura metálica, acabou se sucedendo uma certa confusão nos momentos de determinação espacial.
É mérito da encenação estabelecer um discurso direto – favorecido por suas adaptações e algo já presente no original de Boal – mas há certas complexidades do desenrolar da história que talvez se percam nestes detalhes. Frente à dimensão da apresentação, cabe ainda refletir sobre a possibilidade de microfonação dos atores para um maior alcance. Não há problemas no trabalho vocal do elenco, mas dessa forma seria possível a um (ainda) maior número de pessoas acompanhar com mais clareza a narrativa.
Também vale pensar sobre a recepção da obra. Mesmo deixando evidente que, sim, somos Calibans, um público diverso, nos dias atuais, pode criar outras leituras, considerando a polarização política do nosso país. Santinhos de candidatos de partidos dos mais variados espectros políticos estavam sendo entregues no momento em que a apresentação começava.
Na cena que reforça a visão preconceituosa em relação às culturas nativas, exotificadas e tornadas mercadorias, a beleza plástica de Caliban e a animada canção sobre tirar férias na América do Sul geram aplausos de parte do público. Por outro lado, a assertividade da Canção da Identidade já citada pode soar violenta, considerando a acusação presente no país de que demandas progressistas estão “dividindo o Brasil”. É importante considerar que tais possibilidades de leitura não enfraquecem o discurso da encenação. Ao não retratar Caliban como um horrendo demônio nem como um santo, a obra humaniza sua existência.
Caliban – A Tempestade de Augusto Boal se encerra no mesmo “grande acordo nacional” proposto por Shakespeare. Mesmo construindo de forma voraz sua crítica ao que se passa, seria irreal traçar um outro destino frente aos acontecimentos da narrativa. Boal finaliza seu texto com a Canção de tudo que fica igual, de certo modo pessimista. A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, em espécie de pósfacio, faz uma precisa inserção em seus versos finais: “Enquanto a gente aceitar / tudo fica como está / vive sempre a trabalhar / quando isso vai mudar?”. Sem tirar os pés do chão da realidade, seguem na busca de sua utopia.
*amilton de azevedo é artista-pesquisador, crítico e professor. escreve para a Folha de S. Paulo e para sua página, ruína acesa. responsável pela disciplina "Estudos sobre o ensino do teatro" na graduação do Célia Helena Centro de Artes e Educação.