Ainda que parta de um mote criativo, a montagem uruguaia Lítost, La Frustración não consegue superar limitações de sua dramaturgia
Por Maria Eugênia de Menezes*
As palavras não são propriamente uma forma de circunscrever o que existe. Uma língua não é um catálogo onde encontramos sempre os correspondentes para nomear as mesmas coisas. Trata-se de um meio de ver o mundo. Essa percepção estrutura o espetáculo Lítost, La Frustración, que integra a programação da edição 2018 do Mirada. Na peça uruguaia, os conflitos de uma família – uma mãe e seus dois filhos – ganham corpo em vocábulos que não encontram tradução fora de seu idioma de origem.
Começa-se pelo título da montagem. Em tcheco, Lítost designa o estado de uma pessoa ao se dar conta de sua própria infelicidade. Na obra, a personagem da filha, a jovem Margareth (Jimena Vázquez) desdobra o manancial de palavras que coleciona para dar conta de seu descompasso com o mundo. Ainda que ela queira escrever histórias, sua mãe insiste para que dance todos os dias na estação de trem em troca de algumas moedas. Do outro lado, está seu irmão – que gosta e sabe dançar – mas é mudo. Nesse jogo, estabelecido pela diretora e dramaturga Jimena Márquez, é como se esses filhos se complementassem na hora de se comunicar. Cada um expressando a seu modo – seja com o verbo, seja com o movimento – aquilo que falta ao outro.
Tal enredo é trazido à cena de maneira não linear. Ainda que o desajuste familiar se deva um motivo bastante prosaico – a mãe não aceita que o filho dance por julgar a prática exclusivamente feminina – o tema não aparece em uma roupagem convencional. Supostamente, o espectador acompanha o desenrolar da trama por versões de três autores. A estratégia rende bons apartes ao elenco, especialmente para Gabriela Iribarren. Em sua construção para uma matriarca sem caráter e sem veleidades maternais, a veterana intérprete traz ritmo à encenação, consegue a cumplicidade da plateia e acrescenta ironia ao texto, que por vezes se leva demasiado a sério.
Ainda que seja criativo o mote das palavras sem tradução, o argumento não é capaz de estruturar inteiramente a peça, que se mostra esgarçada em determinadas passagens e sem clareza de propósito. Marcada por sua sensibilidade extremada, a filha teria cedido a impulsos violentos e assassinado um vizinho ao atacá-lo com uma tesoura. Desde então, (o fato remontaria à infância) teria feito um pacto consigo mesma. Conseguiria amainar a ânsia de morte que a toma sempre que conseguisse se lembrar de um termo intraduzível.
Nesse sentido, uma parte de suas falas – assim como das situações em que estaria tomada pelo ódio – soa como mero pretexto para que sejam desfiados vocábulos como toska, forma dos russos falarem de uma angústia espiritual, culaccino, termo italiano para a marca que um copo gelado deixa em uma mesa, ou komorebi, a palavra que os japoneses usam para descrever a maneira como a luz solar é filtrada pelas árvores.
Mesmo quando busca oxigênio em procedimentos contemporâneos, a dramaturgia não supera fragilidades básicas, estruturais. A brincadeira com as palavras intraduzíveis termina como começou, ao acaso. As imagens criadas também não auxiliam o texto a superar suas limitações. Figurinos e cenografia ambicionam dialogar pela similaridade. As listras em preto e branco das roupas se repetem nos poucos móveis que compõem a ambientação sem nada acrescentar à encenação. Mesmo os números do bailarino Santiago Duarte, que interpreta ao filho, pouco somam em termos dramatúrgicos. Ainda que demonstre pleno domínio da técnica corporal, Santiago não pode alterar o panorama apresentado com as pueris coreografias que lhe foram propostas.
*Maria Eugênia de Menezes é crítica teatral formada em jornalismo pela USP, editora do site Teatrojornal – Leituras de Cena e colaboradora do Estadão, jornal onde trabalhou de 2010 a 2016.