Por Michele Rolim*
O novo trabalho da Cia. Brasileira de Teatro (de Curitiba), "Preto", busca criar espaços de convivência entre brancos e negros que não seja pautado apenas pelo respeito e tolerância com a diferença, e sim pela celebração e tensionamento dessa diferença.
O mecanismo teatral encontrado pelo diretor Márcio Abreu para que isso aconteça está muito mais na forma de como as coisas são ditas do que propriamente no que é dito. O espetáculo assume que as palavras não dão conta de abarcar essa diferença e que as imagens e sensações produzidas no palco são mais potentes que o excesso de palavras.
O texto inicia com a conferência de uma mulher negra, no caso a atriz Grace Passô. Que apesar de ser uma atriz reconhecida no campo teatral é antes de tudo uma mulher negra. “Eu poderia falar sobre diversos assuntos, mas sempre me chamam pra falar sobre esse. Então eu vou falar a partir daí. Do preto. Da pretura.”, diz no palco. Grace traz neste trabalho muita referência do seu solo premiado "Vaga Carne". Nele uma voz é a personagem que habita o corpo de uma mulher negra. Essa performatividade da voz também está presente neste trabalho.
Para fazer "Preto" o grupo já parte da premissa de que não há possibilidades de se colocar no lugar do outro. Um branco jamais saberá o que é ser um negro. Perguntas como: “Então, me fala como é ser você” estão presentes na montagem e são ditas ora por negros ora por brancos. Trata-se de um jogo composto por esse duo com a intenção de que ambos coexistam aquele espaço e tempo.
Além da presença vibrante de Grace Passô também conduz o espetáculo Renata Sorrah, uma atriz e mulher branca. Temos portanto, a figura dessas duas mulheres, que trazem suas histórias de vida no palco permeadas por seus corpos e códigos sociais.
Nesses diálogos, não lineares, com direito inclusive a reprodução de trechos de "As lágrimas amargas de Petra von Kant" , peça de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), que ganhou versão brasileira em 1982, com direção de Celso Nunes e com a própria Renata no elenco (acompanhada de Fernanda Montenegro e Juliana Carneiro da Cunha), algo fica exposto: há limites para a empatia.
Só é possível haver empatia entre dois sujeitos. O negro na sociedade racista não é reconhecido como “sujeito”. Portanto, dizer que um branco pode ter empatia por um negro é uma falácia, pois ambos não estão em posição de igualdade.
Então, o que as aproxima definitivamente não é a empatia, mas a possibilidade de ambas estabelecerem alguma relação de afeto.
O tom que a Cia Brasileira imprime para tratar desse assunto por vezes é mais eficaz na representação do político do que peças de formas abertamente politizantes. Isso porque essa proposta provoca, através do jogo teatral entre os atores, a construção de espaços e tempos de convívio. Não se trata de representação da cena, mas de acontecimentos.
De certo modo, esse fazer teatral ocupa o lugar que a sociedade, pela sua necessidade mercadológica, não pode cuidar: o tempo e o espaço do compartilhamento e do convívio. A encenação produz experiências relacionais – descaracterizando o papel tradicional da obra de arte (de caráter representacional) para suscitar “interstícios” ou intervalos estéticos de convívio e trocas entre pessoas que saem do papel tradicional de “atores” e “vivem” uma experiência social e estética.
Mas nem sempre isso ocorre na montagem. Por vezes, a forma é tão dominante que o manifesto contra narrativas hegemônicas - construídas mediante a óptica eurocêntrica e tendo como norma padrão o homem, branco, cis, e heterossexual - fica em segundo plano na encenação sendo, por vezes, retomado com a presença no palco de corpos negros (como, além de Grace Passô, o de Cássia Damasceno e Felipe Soares).
Não há personagens. São performers que estão no palco (também integram o elenco Nadja Naira e Rodrigo Bolzan), todos são chamados pelos seus nomes próprios. Esta é uma forma de compartilhar com o público a constatação de que, apesar de existir uma mediação da ficção no palco, há um momento presente - a realidade, que pode ser interrompida a qualquer instante.
Por vezes não há palavras, mas há imagens. E as imagens são potentes. Como a da atriz Cássia Damasceno que está em cena e se recusa fazer o que uma sociedade patriarcal espera de uma mulher negra: “Eu vou sambar pra vocês ali no fundo. Tá? Não, eu não vou sambar pra vocês”.
Com essa montagem, a Cia Brasileira assume o risco de deixar de lado um discurso feito de palavras para pensar novas formas de existências em que só seremos salvos pelo afeto.
*Michele Rolim é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é idealizadora e editora do site AGORA Crítica Teatral, e autora do livro “O que pensam os curadores de artes cênicas” (Editora Cobogó).