Uma viagem, para resistentes, pela (re)construção da memória em Portugal

Por Pollyanna Diniz*

Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, trabalho da companhia portuguesa Teatro do Vestido, foi apresentado pela primeira vez no Brasil nesta edição do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, numa semana em que memória, cultura e ciência sofreram um golpe, mais um, desta vez daqueles que entram para a categoria de danos irreparáveis. O incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, no último domingo (2), foi citado pela atriz, dramaturga e diretora Joana Craveiro, com a projeção de manchetes e recortes de jornais mostrando o museu em chamas, logo que os espectadores entraram na sala de espetáculos. A perda diz respeito não só aos brasileiros, mas principalmente aos povos das Américas, reforçou a atriz, antes de voltar à dramaturgia original e explicar o porquê de ter decidido enveredar por mais de 80 anos da história do seu país.

Minutos antes, no prólogo, ela mostrou uma foto de quando era garotinha, no colégio, em 1980. Se no Brasil (pelo menos muitas das crianças dos anos 1990), posaram sentadas detrás de um birô escolar, tendo ao fundo a bandeira verde e amarela, a portuguesa tem no seu baú de memórias uma foto com uma paisagem dos Alpes suíços. Mas o que os Alpes suíços representavam no imaginário de um país que, anos antes, em 1974, viveu a Revolução de 25 de Abril, tirando do poder uma das mais longas ditaduras fascistas do mundo, que durou 48 anos? Aliás, depois que essa informação é assim explicitada, a quantidade de anos, fazemos o mesmo que a atriz: imediatamente também nos questionamos como as pessoas suportaram por tanto tempo um regime fascista. Como resistiram?

Em entrevista ao jornal português Público sobre a tragédia no Museu Nacional do Rio, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro deu uma declaração que talvez possa nos ajudar a entender as motivações de Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas. “O Brasil é um país onde governar é criar desertos. Desertos naturais, no espaço, com a devastação do cerrado, da Amazônia. Destrói-se a natureza e agora está-se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo. Estamos perdendo com isso parte da história do Brasil e do mundo, porque se trata de testemunhos com significado para toda a civilização”. No contexto do espetáculo, a dedicação de Joana Craveiro pode ser lida como uma tentativa de impedir que esses desertos se estabeleçam na história de Portugal, mas principalmente que o deserto do apagamento das subjetividades seja realidade, corroendo uma história que não está disponível nos livros de escola. Se a tarefa parece quase inglória, Joana Craveiro decide resistir.

A artista portuguesa criou um museu que tem como seu principal trunfo as histórias, experiências e relatos que talvez nunca tenham sido ao menos formulados, mas que precisavam ser ouvidos. De pessoas invisíveis, comuns, de resistentes, de gente que deixou o país e precisou voltar às pressas, de quem tem uma versão que contradiz a oficial, de quem possibilita com o seu próprio olhar outros modos de percepção da realidade. Uma das inúmeras pessoas entrevistadas por Joana Craveiro para compor a dramaturgia do espetáculo decidiu escrever o que queria dizer, na tentativa utópica de que não lhe escapasse nada. De todo modo, o espetáculo é também uma maneira de abordar a subjetividade da memória, uma forma de pensar como cada um elabora as imagens do passado, mesmo a partir de um repertório em comum, como a convivência em família. Como se dá a transmissão dessas memórias, políticas, mas também obviamente afetivas, no âmbito familiar? Como quem não viveu aquelas experiências pode acessar esse passado que é uma construção individual, mas ao mesmo tempo, coletiva? A dramaturgia tem como uma das suas molas a história da própria artista: as contradições do regime explicitadas nas atitudes do tio que apoiava a ditadura, a estante que guardava os livros proibidos, as referências na infância ao camarada Mao Tsé-Tung, a descoberta de que a sua casa era emprestada para servir como local para reuniões clandestinas.

O acervo desse museu, no entanto, vai além do resgate dessas narrativas subjetivas, que nunca tinham sido de alguma forma reunidas. É um trabalho que se revela impressionante e quase obsessivo pela dimensão da pesquisa empreendida pela companhia: uma quantidade enorme de livros, fotografias, discos, panfletos originais, filmes. Esses materiais compõem praticamente uma instalação como cenário. Veio à memória o espetáculo Arqueologias do Presente - A batalha da Maria Antônia, do grupo Opovoempé, que utiliza outros recursos, tanto em sua encenação quanto na dramaturgia, mas que também revela uma extensa pesquisa sobre os anos da Ditadura Militar no Brasil a partir da batalha entre estudantes da Universidade Mackenzie e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no ano de 1968. Mas no espetáculo do grupo brasileiro, o espectador podia circular pelo espaço cênico, ler os jornais da época, os livros de moral e cívica, acessar os depoimentos de pessoas que estavam na batalha. Mesmo que no trabalho português tenham circulado pela plateia os panfletos e livros proibidos, dá mesmo vontade que aquele acervo pudesse ser disponibilizado para visitação, consulta, uma leitura que pudesse também ser direcionada pelo próprio espectador, talvez uma instalação. Não que a maneira como a encenação se desenvolve não seja suficiente, mas exatamente pelo motivo contrário, já que aguça a curiosidade do espectador e nos faz pensar o quanto há por se descobrir em todos aqueles arquivos e ainda como o teatro pode ajudar a reformular processos históricos.

A encenação é estruturada de uma maneira que pode à primeira vista parecer muito simples, mas que carrega em si uma complexidade e um refinamento na elaboração da estruturação do pensamento. Joana Craveiro é a responsável por uma palestra performativa, se lançando ao desafio de, como se estivesse dando uma aula, apresentar esse museu ao público a partir da projeção de um caderno com muitas anotações, fotografias e legendas escritas à mão, adicionadas às imagens à medida em que a palestra se desenrola. Lança mão de muitos livros, de cadernos outros, põe discos para tocar na radiola, faz circular panfletos pelo público. Na verdade, em sentido estrito, não é apenas uma palestra performativa, mas sete no total, que se articulam na construção do discurso dramatúrgico do espetáculo. Sozinha em cena, a atriz sustenta com louvor o espetáculo por cinco horas e meia. Há ainda um intervalo, quando o público compartilha de um jantar com referências à Portugal. Como um recreio na aula, um momento para tentar se recuperar e de alguma forma começar a lidar com as milhões de informações trazidas pelo espetáculo, ou ainda a reafirmação de que comer é um ato de experiência, convívio e partilha.

  A duração do espetáculo pode assustar alguns espectadores. Fato é que, em algumas propostas cênicas, acompanhar o passar do tempo juntos, de experimentar a vivência de um tempo expandido no teatro, pode se revelar fundamental ao espetáculo. No caso de Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas embora todo o acervo faça sentido, tenha relevância e acrescente dramaturgicamente ao espetáculo, parece ser muito mais uma questão de apego àquelas histórias, às fontes, ao que foi compartilhado com ela de maneira tão preciosa para ser, de alguma forma, editado, como se isso significasse um “descarte”. Não seria. De qualquer forma, mesmo de longa duração, essa viagem acompanhada por resistentes, como a atriz chama os espectadores que a acompanham até o final, é de descobertas e ressignificações históricas. Perpassada pela necessidade de se entender como indivíduos construídos a partir de uma história coletiva, de vasculhar o que ainda há desse tempo em nós, e de como podemos lidar com a reelaboração de um presente.

 

*Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), é idealizadora e editora do blog Satisfeita, Yolanda?, especializado em críticas e notícias de Artes Cênicas.