por amilton de azevedo*
Primeiro trabalho nicaraguense a participar do Mirada, La Ciudad Vacía busca tensionar questões íntimas a seus contextos históricos.
Em 1931, um terremoto atinge Manágua, capital da Nicarágua. A cidade é destruída. Reparos são realizados de maneira inapropriada nas construções e isso acaba por ajudar na repetição da tragédia. Pela segunda vez no século, em 1972, outro tremor transforma o centro da cidade em ruínas.
No final da mesma década, porém, é um abalo popular que transforma o país. A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) consegue, em julho de 1979, depor o último membro da família Somoza a ocupar a chefia de governo nicaraguense. Segue-se, então, um período revolucionário que dura onze anos – que se inicia na fundação da Junta de Governo de Reconstrução Nacional, liderada por Daniel Ortega, eleito presidente em 1984, e termina na votação seguinte, quando Violeta Chamorro, de uma coalizão de oposição, vence.
Hoje em dia, o presidente da Nicarágua é o mesmo Ortega. Cumprindo seu terceiro mandato consecutivo, está no poder desde 2007 – quando a FSLN voltou a vencer eleições presidenciais. Nos últimos anos, porém, suas ações tem sugerido um caráter cada vez mais autoritário para sua gestão. Protestos iniciados em abril deste ano, contrários à reformas da previdência social, foram reprimidos com extrema violência – desde então, já passam de 350 os executados por forças do governo e paramilitares.
É na busca de uma articulação possível entre esses contextos – a partir do encontro entre um sobrevivente de 72, uma revolucionária de 79 e um nicaraguense à procura de seu pai nos dias atuais – que se estrutura La Ciudad Vacía (A Cidade Vazia, 2015) do Teatro Justo Rufino Garay. Por ser anterior aos acontecimentos mais recentes, no entanto, o terror vivido atualmente ficou de fora da problemática do personagem contemporâneo da encenação.
Neste sentido, um texto é lido antes das apresentações a fim de contextualizar um pouco o histórico do país da América Central – representado pela primeira vez neste Mirada – para o público que assistirá à obra. A mexicana radicada na Nicarágua desde 1979 Lucero Millán – uma das fundadoras do grupo, surgido logo no início do período revolucionário – que dirige, escreve e atua na montagem, faz uma forte fala após os aplausos. Além disso, em sua participação em uma mesa de debate dentro das Atividades Formativas – A memória presentificada – também reforçou as questões vividas pelo povo nos dias que correm.
Millán não situa o tempo em que o encontro das personagens ocorre. A cidade vazia evocada pelo título faz referência direta aos efeitos do terremoto, mas pode servir como metáfora para o esvaziamento do processo revolucionário nas décadas passadas e, mais além, em relação à questões mais particulares – o personagem do contemporâneo parece sentir-se vazio no que diz respeito à própria identidade e à sua busca por um sentido na vida.
Dessa maneira, La Ciudad Vacía remete aos acontecimentos históricos mas não se realiza enquanto obra proeminentemente política. A dramaturgia se apoia na relação dramática das personagens, costurando seus quadros dialógicos situados neste (não-)tempo presente com a representação e narração das memórias de seus tempos passados.
Cada um traz consigo uma questão pessoal engatilhada por tais marcos. O sobrevivente do terremoto está em busca de uma mulher, caminhando pela cidade despovoada a sua procura. A revolucionária quer encontrar uma carta de um companheiro de batalha, que dará orientações para a luta continuar. O contemporâneo investiga o paradeiro de seu pai desconhecido.
O espetáculo se desenvolve, então, a partir da cooperação entre os três na direção de seus objetivos. A encenação se revela um pouco ingênua, com a construção de imagens por vezes óbvias, por vezes deslocadas. Na proposta da interpretação, Millán, acompanhada em cena por Jhosay Peralta e René Medina Chavez, parecem trazer ao mesmo tempo a tentativa de compor personagens complexos e certos vícios de uma representação caricata.
São intérpretes carismáticos, mas certas escolhas da direção causam ruídos – a manipulação de bonecos, presente de forma pontual, é construída de maneira que seu efeito acaba enfraquecido, mesmo quando a sugestão da imagem apresentada é potente. A dramaturgia demonstra-se de certo modo frágil, seja em sua estrutura ou na falta de radicalidade e verticalização na lida com alguns temas. As especificidades das questões enfrentadas pelo personagem de nossos dias poderiam ser mais exploradas.
Emerge como discurso central da obra a busca por pertencimento frente ao mundo que nos cerca. Seja na tentativa de encontrar a pessoa amada em uma cidade devastada por eventos naturais, de manter a chama revolucionária acesa em um país anestesiado ou de enfrentar a velocidade do contemporâneo, La Ciudad Vacía acaba debruçando-se no lado mais íntimo de tais problemáticas.
É no reconhecimento de si a partir do olhar sobre o outro que as personagens do espetáculo elaboram suas questões. Ainda que a peça aponte para certo fracasso de seus esforços, há a esperança de que, a partir do encontro e da colaboração com base na empatia e na alteridade, se poderá seguir adiante.
Na escolha pela inserção da canção Latinoamerica, da Calle 13, banda porto-riquenha, parece se revelar uma ambição da obra. Além do refrão na trilha sonora, os atores e a atriz narram a música para o público. Na composição, os versos se referem a acontecimentos, paisagens e figuras da história da América Latina, de modo particular ou amplo. La Ciudad Vacía talvez busque, então, a revelação de que não apenas habitantes de um mesmo país, de diferentes épocas, tenham muito em comum; mas sim, de que os vários povos da nuestra América pertencem a uma mesma realidade.
*amilton de azevedo é artista-pesquisador, crítico e professor. escreve para a Folha de S. Paulo e para sua página, ruína acesa. responsável pela disciplina "Estudos sobre o ensino do teatro" na graduação do Célia Helena Centro de Artes e Educação.