O pulsar do novo tempo

Por Maria Eugênia de Menezes*

 

O espetáculo El Ritmo (Prueba 5), que a Compañía Buenos Aires Escénica apresentou durante a edição 2018 do Mirada, não é uma obra independente, mas parte de um projeto iniciado em 2013 pelo diretor argentino Matías Feldman. Quando criou a proposta, o artista pretendia, segundo suas declarações e entrevistas, realizar um tipo de trabalho mais voltado à investigação da linguagem do que propriamente as pressões que envolvem uma temporada teatral.

Na primeira das criações (que hoje já chegam a sete), o título escolhido era El Espectador: foi em quem assiste que Feldman encontrou seu objeto de investigação – uma curiosidade que ele depois transferiu para procedimentos cênicos e questões teatrais. Mas é importante ressaltar que a série Pruebas não está tratando exatamente de nenhum assunto, mas de diferentes formas de percepção. Em El Ritmo, nada do que importa aparece em diálogos ou cenas explicativas.

É sobre a desconexão entre o corpo e o discurso que El Ritmo se estrutura. As palavras dizem uma coisa quando a linguagem física diz outra. Em uma empresa de logística, um grupo de empregados se envolve em uma rotina de gestos e atitudes: carregam caixas, preenchem planilhas, conferem documentos. Funcionam, grosso modo, como máquinas, seguindo tarefas predeterminadas e sem refletir muito sobre as tarefas que desempenham. Nessa fricção, entre ação e palavra, Feldman libera a montagem de qualquer pretensão realista.

Em El Ritmo, não há trama, não nos apresentam nenhum conflito que precise ser solucionado. A plateia acompanha apenas o cotidiano dos personagens. É um jogo de puro teatro, em que o público se vê instado a ampliar sua percepção. Precisa reconhecer o mecanismo em cena para, mais adiante, absorver o discurso - que nunca é direto. Não se trata de um espetáculo de defesa de ideias ou teses. Tudo parece estar na forma (ainda que a distinção entre formato e conteúdo se mostre bastante redutora quando se fala desta obra).

Para sublinhar a dinâmica da peça, a direção insere no elenco uma única atriz de outra faixa etária. Nada precisa ser verbalizado nas cenas em que ela aparece. Se de um lado, seus passos são lentos e seus movimentos, cuidadosos, o mesmo não pode ser dito do restante dos atores, que corre ofegante de um lado a outro. Assim, com imagens, El Ritmo traz a reflexão sobre como o avanço do capitalismo financeiro gerou novas condições de trabalho. A flexibilização criou trabalhadores que definem suas próprias rotinas de produção. Na peça, os empregados não sabem para quem trabalham. Conhecem apenas seu superior imediato. Não se sabe a quem essa empresa pertence. Atuam no setor de logística. Mas ignoram também qual seria ao certo sua função.

Curioso é que a rotina maquinal, de gestos limitados e repetitivos, não diz respeito apenas às práticas corporativas: também os produtos que consumimos geraram um novo modo de fruição do tempo, que se tornou constantemente fluido e veloz. Em meio ao trabalho, dois colegas vasculham as telas de seus celulares movendo os dedos da mesma forma. As pausas que fazem para o café se assemelham. Paira a sensação de que todos os corpos são manipulados por cordas invisíveis e seguem uma mesma partitura.

Ainda que focalize as mudanças no mundo do trabalho – e flagre suas contradições de maneira aguda – seria impreciso dizer que El Ritmo é um espetáculo sobre esse tema. Essencialmente, a peça amplifica o ritmo que nos governa. Entradas, saídas, interrupções e repetições. Nossas formas de agir e se relacionar foram atravessadas pela época em que vivemos. Completamente contaminadas por questões políticas e econômicas, que fogem ao controle do indivíduo.

 

* Maria Eugênia de Menezes é crítica teatral formada em jornalismo pela USP, editora do site Teatrojornal – Leituras de Cena e colaboradora do Estadão, jornal onde trabalhou de 2010 a 2016.