O homem que aprendeu a amar

Se você esteve no Mirada 2018, há uma grande chance de ter cruzado com o Osvaldo por aqui, numa fila para conseguir ingresso, num hall de teatro, ou imerso em uma peça. Até o final do festival, ele espera ter contabilizado pelo menos uma dezena de espetáculos assistidos. E olha que tem peça que vale por duas. Ou até três. Mas nada que o desanime, não.

As quatro horas de duração da Odisseia, da Cia Hiato, por exemplo, foram encaradas com entusiasmo. Cantou, se emocionou, chorou. Depois, voltou para casa, no Guarujá, e foi pesquisar sobre Homero na internet.

“Vi uma matéria que falava alguma coisa assim: o homem tem 4 milhões de bits, mas a gente só usa uns 3 milhões. E acho que foi isso que aconteceu comigo. Eu sinto que fiquei parado muitos anos. Mas o teatro justamente abre as portas, porque faz você pesquisar. ”

Aposentado do Porto de Santos, 64 anos, o Osvaldo que encontramos é uma pessoa doce e falante, mas nem sempre foi assim. Ele teve problemas sérios de alcoolismo até os 30 anos de idade. Começou a retomar o controle da situação há 34 anos, quando conheceu o AA (Alcoólicos Anônimos), ou a "irmandade", como ele diz. E foi justamente um dos irmãos do grupo que o incentivou a ler, uns 20 anos atrás. Da leitura, ele engatou na música e no teatro. A irmandade salvou sua vida. A cultura a transformou.

Esta já é a terceira edição do Mirada que ele vem assistir. Desta vez, viu o Grande Sertão: Veredas, de Bia Lessa, e nem se abalou com as cenas de nudez. “Hoje vejo com naturalidade homem pelado, mulher pelada. O teatro mudou minha cabeça.”

No início, quando via uma cena mais “ousada”, achava estranho, criticava.  “Eu não fui ensinado. Minha mãe era cearense, era aquela imposição, né?! Tem que ser machão.”

Mas talvez a curiosidade tenha vencido o incômodo. Osvaldo foi vindo, foi vendo, foi gostando. E aos poucos também foi deixando os preconceitos pra trás. “O teatro para mim é mudar o conceito de tudo. Para ser um bom pai, talvez um bom marido.”

Inspirada em histórias reais de violência familiar, Ñaña foi uma das peças que deixou Osvaldo mais tocado. Ele conta que nunca se sentiu amado pela mãe. E também nunca conseguiu demonstrar afeto pelos filhos.

“Vou ser sincero, sempre fui estourado. Mas parece que estou melhorando, talvez seja a idade. Já sou bisavô.” Pega o celular e aponta: “Essas aqui são as minhas duas netas. Eu nunca disse pros meus filhos ‘eu te amo’. Mas eu vejo as minhas netas e falo: eu te amo, Clara; eu te amo, Lina.”

Ele conta que está treinando para um dia pedir perdão para os três filhos e dizer tudo o que ainda falta.

E, agora que chegamos ao final do texto, preciso dizer que nosso personagem não se chama Osvaldo. Ele pediu para preservarmos o nome dele, assim como ele não revela os nomes de seus colegas de “irmandade”.

“Sabe como eu vejo? A minha vida é um teatro, mesmo sem estar no palco. O Mirada é um reflexo da vida. Acho que o teatro é fictício, é história, mas na história não tem nada que não seja verdade.”

Para os curadores do próximo Mirada, ele deixa um último pedido: queria ver retratada no palco uma história igual à dele.

Até 2020, Osvaldo!

Cris Komesu, editora web do Sesc

Nota do editor:

Tirando a questão do nome fictício, todo o resto é verdade. Bem, pelo menos é o que ele contou para a nossa reportagem. Como alguns espetáculos do Mirada deixaram claro, as fronteiras entre verdade e ficção estão cada dia mais borradas nas narrativas contemporâneas. Já tínhamos visto Osvaldo em outras peças e decidimos abordá-lo após a apresentação de O Bramido de Düsseldorf, peça uruguaia de autoficção, termo usado para designar uma autobiografia ficcional. Em questão de segundos, ele começou a falar da importância do teatro, que ajudou a abrir sua “cabeça de camarão”. Éramos três da equipe do Mirada, incluindo um casal grávido. Osvaldo olhou para a barriga de sete meses e começou a dizer como se arrepende dos erros que fizeram seus filhos se afastarem. Deu conselhos, um abraço apertado e despediu-se dizendo que estava disposto a passar um café em sua casa e conversar mais sobre sua vida, desde que preservássemos sua identidade. Saímos desse primeiro encontro com um nível excessivo de umidade nos olhos, pensando se aquele encontro tinha sido real ou uma espécie de prólogo customizado do espetáculo, a derradeira cena ficcional.