“NÓS” COMO COMUNIDADE EFÊMERA

Por Michele Rolim*

A noção de que o teatro pode ser o espaço de criação de uma comunidade efêmera é ampliada no espetáculo Fauna, da mineira Cia Quatroloscinco – Teatro do Comum. No espetáculo os atoes Assis Benevenuto e Marcos Coletta convidam o público a estarmos juntos. “Vamos tentar construir algo juntos hoje?”.

Chamada de peça-conversa no programa, o convite à participação do espectador durante a encenação se dá de várias formas. Os atores estão em cena como performers e não interpretando personagens.  Ou seja, de imediato perde-se a hierarquia entre ator e público, rompe-se a quarta parede e se estabelece uma relação horizontal.

Antes de entrar na arena a plateia é convocada a tirar seus sapatos e a depositá-lo numa caixa. Ela encontra os atores já no palco numa espécie de dança ou como se estivessem num ringue. Logo, os atores peformers jogam todos os sapatos no palco, ao espectador é oferecida bebida e somos envolvidos na criação juntos com eles, que lançam como ponto de partida o questionamento:  “A gente já e muita coisa”. Em seguida a pergunta reverbera na plateia, algumas pessoas dizem seu nomes e completam a frase: a gente “ama” , “brinca”, “sonha”, “se fode” etc. Começa-se a criar uma atmosfera de afeto e estranhamento.

Não há uma narrativa linear, são várias as narrativas criadas “com” e não “para” o espectador, o texto serve como dispositivos para que plateia e performers estejam juntos. O convite a participação “autoral” do público se dá de maneira ética, respeitando o limite e disponibilidade de cada espectador.

Somos interpelados por uma história de viagem de Marcos pelos campos de concentração nazistas de Auschwitz. Galpões turísticos que alojavam cabelos, brinquedos, próteses, pequenos objetos pessoais e sapatos dos mortos. No qual nos remete de imediato à pilha que está no centro da arena.  E indaga o público com a seguinte provocação: “o campo de concentração fala do que a gente é e pode vir a ser a qualquer momento”. A peça, com direção de Rejane Faria e Ítalo Laureano, reverbera diretamente no atual momento brasileiro e mundial que discursos fascistas estão ganhando projeção.

O público a partir dessa provocação é convidado a pensar não só quem ele é de fato, mas quem é o outro. Um espectador é convocado a calçar um sapato que não é o seu. É como se nos convocasse a pensar em um exercício de empatia. Como podemos nos colocar no lugar do outro? é possível? há limites na empatia?

E logo outra pergunta é lançada pra plateia: “qual a distância que existe entre você e eu?”, “entre você e seu maior sonho?”, “entre você e seu maior medo?”.

O encontro em Fauna se dá no tempo presente, deixa de ser espetáculo e se torna acontecimento. A partir desses dispositivos somos provocados a refletir sobre a humanidade e como “nós” habitamos o mesmo tempo e espaço.

Temos, portanto, uma opção por uma estética que é política, que faz sua aposta em linguagens que fortalecem as micropolíticas gerando uma atmosfera coletiva. Ou como chama o antropólogo Victor Turner, uma communitas (termo latim) e não comunidade, de modo a não conferir abrangência espacial aos vínculos entre os sujeitos presentes, já que o caráter de antiestrutura da communitas está baseado em relações sociais e não em pertencimentos territoriais.

Somos uma fauna que se estrutura pelas relações que vamos estabelecendo ao longo da vida. A peça no dá a sensação de que podemos nos entender enquanto espécie. É quando é lançado o questionamento para a plateia de que estamos nos extinguindo no sentido expandido. Aumento do fascismo, violência, censura, o não respeito a diversidade ou a própria extinção do meio ambiente e da nossa espécie. E talvez algo esteja se rompendo, como diz um dos atores. Esse rompimento pode se dar de várias formas. Estamos rompendo. E pode ser que isso seja preciso para nascer o novo, para estabelecermos novas formas de existência e convivência tão possíveis como foi possível estabelecer ao longo de 75minutos do espetáculo.

Temos nesta montagem contemporânea o teatro no seu sentido mais arcaico; um lugar de encontro para uma comunidade, um espaço conflituoso no qual os cidadãos refletiam sobre o que quer dizer com “nós”.

 

*Michele Rolim é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é idealizadora e editora do site AGORA Crítica Teatral, e autora do livro “O que pensam os curadores de artes cênicas” (Editora Cobogó)