No espetáculo peruano Ñaña, a diretora e dramaturga Claudia Tangoa assume a parcialidade de seu ponto de vista para narrar a história verídica de uma criança vítima da violência
Por Maria Eugênia de Menezes
Duas mulheres têm a mesma origem. Ambas nasceram em um povoado rural no interior do Peru. Suas vidas, no entanto, tomaram rumos bastante distintos. Afetadas muito mais por condicionantes econômicos e sociais do que pelo local de nascimento. No espetáculo Ñaña, que integra a programação 2018 do Mirada, a dramaturga e diretora peruana Claudia Tangoa convida o público a conhecer essa história.
Na trama, que nos é apresentada como verídica, Elisa (Verony Centeno) é uma criança pobre, violentada pelo padrasto e pelos irmãos, que vai morar sob a guarda do Estado. Quem denuncia os estupros sucessivos a que ela era submetida é uma enfermeira, que anos depois do incidente consegue adotá-la. Ao sair do orfanato, a menina vai morar em Lima e descobre que, além da mãe adotiva, ganhou também uma irmã, Lucy (Alexa Centurión).
A adaptação a um novo contexto, urbano, não será simples. Assim como serão incontáveis as sequelas deixadas pelos abusos e pelo abandono. Mas, curiosamente, não é Elisa quem nos relata esses percalços. Todos os acontecimentos são narrados pelo ponto de vista de Lucy, uma jovem de classe média. Em algumas entrevistas, Claudia Tangoa justifica o procedimento dizendo ser essa uma forma de aproximar a plateia da situação retratada. São muitos, afinal, os relatos de violência sexual sofrida por crianças pobres. Esse seria um meio de romper certa apatia em relação ao que poderíamos supor estar muito distante.
Conforme acompanha-se a encenação, contudo, fica evidente que essa voz narrativa não se relaciona apenas com o espectador, mas se confunde com o olhar da autora. Não por acaso, a personagem Lucy é uma diretora teatral, às voltas com as dificuldades de produzir peças em seu país. Nesse momento, entram em campo as recentes discussões sobre lugar de fala. Afinal, a opção retira da personagem Elisa o direito de se assenhorar da própria história Como de regra, cabe à intelectualidade esclarecida mediar o debate. E seu discurso, como não poderia deixar de ser, vem impregnado de relações de poder e de classe.
Mas como se daria, afinal, essa transmissão de experiência se o veículo utilizado é o teatro? Apenas os relatos autobiográficos seriam legítimos? Há limitações na escolha da a diretora, mas não se pode deixar de reconhecer-lhe a honestidade intelectual quando circunscreve os eventos a seu campo de visão parcial.
A trajetória de uma criança violentada e abandonada se prestaria certamente a um tratamento dramático. Todos os mecanismos do drama convencional poderiam ser empregados para alcançar maior efeito emocional sobre quem assiste. Ñaña, felizmente, segue em direção contrária convocando procedimentos de distanciamento à cena.
Acesas as luzes, as duas atrizes saúdam o público presente, explicam quais papéis irão interpretar e esclarecem que o espetáculo deve oscilar entre momentos de narração e outros de representação. Mesmo essa representação, cabe dizer, terá lugar em um palco desprovido de cenografia e as breves trocas de figurino se darão à vista da plateia. Os potenciais efeitos de ilusão são suprimidos e só resta lugar para algumas intervenções audiovisuais. As imagens carregam um caráter dúbio: ora convidam à digressão (impregnando de uma pretensa carga lírica ou nostálgica algumas das cenas), ora reafirmam o caráter documental da obra. Toda a encenação propõe um jogo que é de imaginação, mas também de elaboração racional.
A peça adentra em território arriscado quando cede demasiado espaço às digressões de Lucy – a artista que não consegue trabalhar e se ressente de uma relação mal resolvida com o pai – e ao suposto descontrole emocional de Elisa, que passa a receber cuidados psiquiátricos a partir de dado momento. É abrupta a passagem para esse contexto, que inclui um deslocado tratamento hospitalar da personagem.
Sustentam a obra o domínio das intérpretes e a guinada final da dramaturgia, que recusa uma resolução edulcorada e pacificadora. Ainda que tenha sido importante a acolhida que recebeu de sua irmã adotiva, Elisa não abraça o mundo novo que lhe foi apresentado e retorna ao campo para viver em companhia de uma irmã legítima – essa também vítima de um estupro na infância. De muitas maneiras, Ñaña aborda o amor, mas sem fechar os olhos às suas limitações e discrepâncias.
Maria Eugênia de Menezes é crítica teatral formada em jornalismo pela USP, editora do site Teatrojornal – Leituras de Cena e colaboradora do Estadão, jornal onde trabalhou de 2010 a 2016.