No palco do Ginásio do Sesc Santos, entre caixas de canhões de luz, artistas mineiros contam a história dos integrantes da companhia teatral uruguaia El Galpón, grupo fundado em 1949, perseguido no regime militar em 1979 e exilado no México. Num momento em que a questão dos refugiados é um tema tão pulsante, o público acompanha emocionado as histórias desses personagens e o significado de, por questões políticas, ter de viver em território estrangeiro. A liberdade é o conceito que embala músicas e dá ritmo aos movimentos dos atores, aos diálogos, à esperança pelo retorno em Vou Voltar, espetáculo do Grupo Ponto de Partida, dirigido por Regina Bertola e apresentado durante o Mirada.
Em uma das primeiras fileiras da plateia, discretamente sentada no canto oposto ao da entrada, onde quase não se é observado, uma senhora acompanha em silêncio. Durante a apresentação, é apenas mais uma entre as dezenas de pessoas. Ao final, sua discrição e silêncio são interrompidos e ela é chamada ao palco. Seu nome é Amélia Porteiro, uma atriz e diretora de 70 anos que vive em Montevidéu, capital do Uruguai. Há algumas décadas, Amélia sentia a mesma saudade que está em cena, escrevia cartas semelhantes a seus familiares, também criava seus filhos fora de seu país de origem. Amélia era uma das exiladas do grupo El Galpón, do qual é integrante há 46 anos.
As memórias sobem ao palco
A uruguaia conheceu a companhia antes mesmo de decidir dedicar sua vida ao teatro. Acompanhava o grupo como fã/espectadora em seu país de origem e, só depois, se tornou integrante, manipulando bonecos e trabalhando como assistente de direção. Depois, começou a atuar. Exilou-se quando a companhia foi perseguida por causa da ditadura militar. Na volta do exílio, após nove anos, decidiu que precisava estudar arte dramática. Foi no grupo que viu sua vida pessoal também mudar: conheceu seu marido e, quando foram obrigados a sair de seu país, estavam com o primogênito de 1 ano no colo e ela, grávida do segundo filho de 7 meses.
Desde que o espetáculo estreou em Barbacena (MG), em setembro de 2017, sempre que pode Amélia pega um avião para assistir à encenação. É uma das fãs mais fiéis. Na primeira vez que viu, às vésperas da estreia, começou a chorar ainda no meio do texto e só parou dias depois de chegar à sua casa. As memórias vieram à tona. Um ano depois, as emoções ainda são fortes e vivazes.
Amélia entre os integrantes do Grupo Ponto de Partida, Pablo Bertola e Júlia Medeiros - Foto: Marcel Verrumo
Vou Voltar começou a ser produzido em abril do ano passado e levou seis meses para estrear. Seu tempo de gestação, no entanto, foi muito mais extenso. Desde 1993, Amélia e os outros integrantes do grupo uruguaio El Galpón trocam mensagens com os mineiros responsáveis pela montagem. Segundo ela, as décadas foram necessárias tanto para a confiança em contar histórias tão íntimas, quanto para conseguir transformar o pesadelo em discurso. “O que vivi durante o exílio foi muito intenso. Levei, assim como muitos exilados, anos para conseguir contar essas histórias para mais pessoas. Sinto que essa peça só poderia ser montada agora, porque só agora conseguimos contar pra alguém”, revela Amélia sobre o processo de criação, que se baseou em 40 horas de entrevistas com os integrantes do El Galpón, além de um mergulho nas leituras que o grupo fazia durante o tempo que viveu no México.
O espetáculo é um retalho de memórias, uma coleção de porta-retratos sobre histórias particulares, um recorte sobre a trajetória recente do Uruguai. Os personagens não representam os atores do El Galpón individualmente: há tipos que simbolizam o grupo e carregam as vivências de várias pessoas. Em cena, cada um traz os cotidianos, os sonhos e os medos de vários exilados.
Amélia se reconhece em várias histórias, reencontra as imagens de amigos, revive décadas a cada apresentação. Sua emoção na plateia é, em última instância, a emoção de quem, décadas depois, se reencontra consigo mesma. Ver parte de sua vida, a de seus amigos e a de sua companhia encenadas no festival Mirada é, para ela, a realização de dois sonhos. O primeiro é o de ver sua memória ser passada a mais pessoas de diferentes países; o segundo, o de fazer isso usando as artes cênicas. “Há mensagens que apenas o teatro é capaz de transmitir. Se essa história fosse contada num panfleto ou num livro, o resultado seria outro. Vou Voltar traz a história de um grupo de teatro para o teatro e atinge um nível de emoção e sensibilização que, talvez, nenhuma outra arte conseguiria atingir”, finaliza.
Marcel Verrumo e Danilo Cava, editores web do Sesc