Uma história de resistência e amor pela arte

A ligação de Santos com as artes cênicas remonta aos tempos de Dom Pedro I. O registro mais antigo é de 1830, quando foram feitas as primeiras apresentações numa edificação precária no centro da cidade, iluminada por velas e candeias de azeite. Escravos transportavam as cadeiras até o local. Verdades inconvenientes da nossa história.

ARTE + POLÍTICA =

O primeiro teatro propriamente dito foi o Guarany, inaugurado em 1882 no centro de Santos. Na época, a escravidão já era considerada uma aberração, tanto que havia sido abolida em vários outros países. Esse sentimento também era evidente no palco do teatro, em discursos do jornalista abolicionista José do Patrocínio, em atos republicanos e na proclamação da primeira e única constituição municipal do país, em 1894.

Foi lá também que aconteceu uma história incrível: durante a estreia da peça A Sombra da Cabana, de José André do Sacramento Macuco, um escravo recebeu sua carta de alforria, que foi paga com o dinheiro da bilheteria.

= PAGU

O Guarany teve papel fundamental para a construção do caráter combativo do povo santista. E aqui é preciso dedicar algumas linhas à Patrícia Galvão, a Pagu, figura icônica não só do cenário cultural, com também das lutas sociais.

= PRESERVAÇÃO

Antes de deixar seu legado teatral, Pagu passou maus bocados. Filiada ao Partidão, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi presa em 1932 por apoiar uma greve de estivadores.

= NOMES DE PESO

Além de Pagu, a história do teatro santista é formada por uma série de estrelas e astros. Para citar alguns deles:
Carlos Alberto Sofredini: dramaturgo e diretor teatral;
Jandira Martini: atriz e escritora;
Neyde Veneziano: diretora e encenadora;
Ney Latorraca: ator;
Nuno Leal Maia: ator;
Alexandre Borges: ator;
Bete Mendes: atriz;
Sérgio Mamberti: ator;
Plínio Marcos: escritor e dramaturgo.

= IRREVERÊNCIA

Sobre Plínio Marcos, uma anedota curiosa. Em 1951, aos 16 anos, ele entrou para o circo por causa de uma garota. "Eu queria namorar uma moça do circo, que conheci quando o cantor do nosso bairro foi cantar no circo. O pai dela só deixava ela namorar gente do circo. Então eu entrei para o circo. Achei que era mais engraçado do que o palhaço e que eu devia ser palhaço.”

= PROVOCAÇÃO

Em 1957, Plínio conheceu Pagu. Ele era ator de um grupo de teatro infantil fundado por ela. Foi Pagu quem o aconselhou a seguir carreira no teatro. Deu certo. Plínio fez sucesso retratando temas como homossexualidade, marginalidade, prostituição e violência, em suas peças com diálogos e situações cortantes e carregadas de gírias. Vida real na veia! Seu currículo tem obras como Barrela, Dois Perdidos Numa Noite Suja, Navalha na Carne e Querô, entre tantas outras.

= INICIATIVA

Em 1958, Pagu lançou o Festival Santista de Teatro (FESTA), junto com a Comissão Estadual de Teatro e a Comissão Municipal de Cultura. A partir dali, o teatro santista começou a ganhar projeção nacional. A cidade se tornou um laboratório de novos profissionais e revelou grandes nomes.

= VANGUARDA

A segunda edição, em 1959, teve a estreia mundial da peça Fando e Lis, do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, pelo GETI – Grupo Experimental de Teatro Infantil, com direção de Pagu e Paulo Lara. Teve também a estreia de Barrela, primeira montagem de Plínio Marcos, que recebeu menções honrosas em “espetáculo” e “direção”.

= CENSURA

Mas a ditadura não gosta de arte. Especialmente em regimes autoritários e repressivos como o que teve início com a decretação do AI-5, em 1968. O FESTA não estava nem aí. Levou ao palco peças audaciosas, que falavam de política. Até que, no final dos anos 70, a repressão falou mais alto e interrompeu o festival.

= COMBATER O SISTEMA

Sobre a ditadura, uma palavrinha de Carlos Pinto, ex-presidente da Federação Santista de Teatro. “Ah, ela era a nossa musa inspiradora. Eram tempos difíceis, mas incríveis. Nós tínhamos em quem bater, uma causa pela qual nos levantarmos. E o teatro é isso, lutar contra um sistema. O espetáculo que apresenta solução está errado. O papel da arte é escancarar o problema e assim fazíamos. E a população respondia, lotava as apresentações... Aquele foi o melhor período do teatro amador de Santos.”

= AMOR PELA ARTE

“O que mais chamava minha atenção quando eu era um menino de 14 ou 15 anos era a função social dos atos teatrais. Aqueles atores encenavam a arte com um sentido de trazer debate, questionamento e engajamento com coisas maiores. Muitas vezes estavam ali apenas por amor, sem nenhuma remuneração ou visibilidade. Esse amor, esse prazer que descobri nos palcos do FESTA, carrego comigo até hoje”, diz o ator Alexandre Borges.

= UNIÃO

Em 1998, o MTBS (Movimento Teatral da Baixada Santista) e o FESTA se articularam contra a proposta do governo municipal de extinguir a Secretaria de Cultura de Santos. Conseguiram derrotá-la. Outra conquista foi derrubar a ideia de transformar em museu a histórica Cadeia Velha de Santos – a mesma em que Pagu ficara presa. Assim, o espaço segue com suas celas impregnadas de arte e cultura, funcionando como polo do Projeto Guri e espaço de exposição e apresentações artísticas diversas.

= INTEGRACIÓN

Em 2010, a cena teatral da cidade foi reforçada com a criação do Mirada, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, que reúne a cada dois anos companhias de diversos países da América Latina, mais Portugal e Espanha, as duas nações ibéricas. Em quatro edições, foram apresentados 363 espetáculos, de 15 países.

= FRATERNIDADE

Um dos nomes-chave por trás da concepção do Mirada é Pepe Bablé, diretor artístico do Festival Ibero-Americano de Cádiz, na Espanha. Cádiz e Santos, consideradas cidades-irmãs, têm suas histórias ligadas ao porto e ao mar. Enquanto Cádiz promoveu a conexão geográfica com toda a América espanhola, como ponto de partida das caravelas desde o século 15, Santos é um hub de conexão dos países latino-americanos.

= FORMAÇÃO

Nada disso aconteceria se não houvesse a formação de profissionais para atuar no teatro. Com isso chegamos a mais um evento fundamental na cena artística da cidade, o FESCETE (Festival de Cenas Teatrais). Considerado o primeiro festival de cenas do Brasil, o Fescete orienta o processo de criação, investe na formação de novos talentos, promove intercâmbio cultural entre artistas e técnicos. Objetivo: estimular os estudantes para a formação de novos grupos teatrais, para exercer cidadania nas escolas, fomentar a produção, incentivar a formação de público.

= RESISTÊNCIA

Cada um com seu pioneirismo, o Mirada chega neste ano à quinta edição, o FESCETE à 22ª e o FESTA aos 60 anos. Mesmo com a turbulenta situação vivida pelo país, com a falta de recursos para cultura, com os potenciais espectadores cada vez mais viciados em seus smartphones, o teatro segue firme, forte e vigoroso em Santos.