Mapa Teatro e o seu festivo funeral

Por Maria Eugênia de Menezes*

Para tratar da violência histórica na Colômbia, um conflito armado que se arrastou por mais de 50 anos, o grupo Mapa Teatro criou uma trilogia de peças. Ao longo da última década, os irmãos suíço-colombianos Heidi e Rolf Abderhalden investigaram o passado recente do país e o plasmaram em surpreendentes espetáculos enfeixados sob o rótulo de Anatomia da Violência.

Em 2010, estrearam Los Santos Inocentes, obra que mostrava uma festividade na qual mascarados agrediam pessoas nas ruas. Com Discurso de un Hombre Decente, em 2012, os diretores partiam de uma carta fictícia que teria sido encontrada com Pablo Escobar no dia de sua morte. Com Los Incontados, imaginavam encerrar o tríptico mostrando um grupo de crianças que acompanhava pelo rádio os passos da revolução. Mas a história ainda não havia chegado a seu desfecho. Qual seria o destino dos grupos revolucionários? E das milícias paramilitares que os enfrentaram? Foi preciso esperar pelo acordo de paz, assinado entre o governo e a liderança das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em 2016, para que o ciclo de espetáculos pudesse finalmente ter um fim.

É esse o contexto que ensejou La Despedida, criação que o grupo apresentou nesta edição 2018 do Mirada. Ali, diversos traços das montagens anteriores são recuperados. Elementos marcantes, como o uso de plantas e máscaras em cena, retornaram como uma espécie de assinatura estética. O vínculo com o real – outro aspecto sempre valorizado pelo Mapa Teatro – também pareceu ganhar ainda mais força.

Mas o uso de elementos da realidade, seja por meio de documentos e testemunhos, seja na forma de canções e manifestações populares, não serve apenas para corroborar uma versão específica. No espetáculo, a intenção é problematizar a própria maneira como construímos aquilo que será chamado de história. A visão do historiador como um agente imparcial, que captura os resultados do processo social sem atribuir-lhe um sentido específico, há muito entrou em desuso. Sabemos que, nesse processo, escolhas serão feitas e alguns fatos – a depender de quem são os seus narradores – receberão mais crédito que outros.

La Despedida discute a parcialidade dos relatos e vai além. Mergulha nos mecanismos implicados na construção de narrativas históricas a partir de um episódio particularmente simbólico. Depois de assinado o tratado de paz, o exército colombiano converteu o antigo acampamento guerrilheiro El Borugo em um sui generis ponto de atração turística. Lá, o público pode assistir a representações em que soldados foram transformados em atores e encenam as antigas práticas das Farc – entre elas, o sequestro de prisioneiros como Ingrid Betancourt. O teatro, neste caso, é usado como forma de afirmar uma suposta realidade.

Amplamente questionados pelo gênero que convencionamos chamar de “teatro-documentário”, os limites entre ficção e realidade são dilatados por interessantes procedimentos dessa companhia de Bogotá. Se a representação teatral é usada como testemunho da verdade, a encenação vai buscar fontes tidas como documentais para criar novas e insuspeitas camadas de leitura. Mistura, dessa maneira, depoimentos e arquivos legítimos com exemplares falsos. Enquanto nos perdemos entre trechos de antigas filmagens e programas radiofônicos, a verdade se torna um conceito cada vez mais fugidio. Quase ao acaso, as câmeras capturam a perspicaz observação de um oficial do exército ao diretor Rolf Abderhalden: “A guerra das armas terminou. Começa agora a guerra da memória”. 

No cerne de todas as peças do projeto Anatomia da Violência, o Mapa Teatro lida com a estreita ligação entre morte e festa na cultura colombiana. O aparente paradoxo é explorado em imagens de cores fortes, carregadas de simbolismo. Constantemente em cena, um acordeonista tenta instaurar um clima de celebração. Os grandes ideólogos do comunismo – Lenin, Guevara, Marx – surgem como fantasmas nesse ritual. Será um evento de celebração ou de luto? O acordo pela paz selou, de uma só vez, o fim de um pesadelo e de uma utopia. Há perdas e renascimentos por toda a parte.

 

*Maria Eugênia de Menezes é crítica teatral formada em jornalismo pela USP, editora do site Teatrojornal – Leituras de Cena e colaboradora do Estadão, jornal onde trabalhou de 2010 a 2016.

 

La Despedida acontece também no Sesc Pinheiros durante o Extensão Mirada.