ESPECTADOR COMO VOYEUR

Por Michele Rolim*

A companhia colombiana La Maldita Vanidad lança díptico que questiona os pressupostos da linguagem trabalhada por ela até então, mas não muda o lugar que o espectador costuma ocupar dentro das suas encenações. Conhecida por suas montagens realistas, o grupo colombiano esteve pela primeira vez no Brasil em 2012. E mais recentemente apresentou seus trabalhos na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo de 2015, tais como Matando o tempo, primeiro ato inevitável: nascer e Morrer de amor, segundo ato inevitável: morrer.

Em ambos os trabalhos havia uma investigação acerca do realismo, mas ao invés do palco tradicional a encenação era levada a uma casa de um dos bairros de São Paulo. O espectador fazia um pacto de ilusão com o grupo e ocupava a posição de uma espécie de voyeur na peça, observando a ação que se passava dentro do espaço.

A narrativa obedecia a fórmula melodramática tradicional e era composta por personagens e universos da vida urbana contemporânea da América Latina. São figuras que vivem alguma situação limite e carregam consigo alguma carga do passado. São pessoas do cotidiano – o que provoca uma relação de reconhecimento imediato com a plateia – e geralmente são personagens marginalizados pela sociedade.

Dito isso, as duas encenações que ocorreram no Mirada deste ano, Dramas Neo-Costumbristas de Carácter Fatal: Nos hemos olvidado de todo (Drama 1) Dramas Neo-Costumbristas de Carácter Fatal: Promesa de Fin de Año (Drama 2), ao contrário das anteriores, acontecem no palco italiano tradicional. Ambas as peças utilizam o mesmo cenário, modificado apenas pela presença dos objetos expostos .A narrativa também obedece a mesma fórmula: traz uma história aristotélica, com início, meio e fim. No entanto, há diferença na linguagem até então trabalhada pelo grupo está no lugar da ação que se desenvolve também na mente da personagem e é representada no palco, o que quebra com o pacto de ilusão estabelecido pelo grupo com os espectadores em outras montagens. As duas montagens tem direção e dramaturgia assinadas por Jorge Hugo Marín.

A dramaturgia do espetáculo Nos hemos olvidado de todo (Drama 1) foi realizada a partir de uma residência artística que ocorreu na Cidade do México em 2013, no contexto do projeto LAB13, coordenado por Alfonso Cárcamo. Estreou na sede do grupo em Bogotá este ano. A obra tem como ponto de partida a última cena de Ivanov, do russo Anton Pavlovitch Tchecov (1860-1904). A história gira em torno da vida Iván (interpretado por Saeed Pezeshki), um homem que se encontra sozinho em um hotel, até o momento que chega sua noiva. Iván está com uma série de problemas, fugindo de todos e prestes a se matar. Na sua mente volta a história que teve no passado com sua mulher já morta.

O texto situa o espectador no ano de 1978. Ano que foi eleito na colômbia o liberal, Julio Turbay Ayala, contra quem se aliaram manifestações de descontentamento popular e iniciou em seu governo o combate intensivo aos cartéis de drogas. Apesar da narrativa não trazer esses dados, fica subentendido que há nesta época uma crise de perspectivas na Colômbia. Iván está desempregado e sem dinheiro e sua noiva faz menção de irem morar em outro país.

Enquanto que no espetáculo Promesa de Fin de Año (Drama 2) o enredo denuncia um dos problemas recorrentes do país: o tráfico humano e a prostituição de menores. O espetáculo realizou sua estreia neste Mirada. A peça apresenta os conflitos da personagem Silvana que foi forçada a realizar a cirurgia de mudança de gênero e agora deseja voltar à condição de homem. Ela foi vítima de sequestro aos 10 anos e de uma vida de exploração sexual. A encenação é inspirada em uma mulher que foi pedir ajuda para realizar a mudança de gênero em uma unidade de consultas médicas para moradores de um bairro de prostituição.

A montagem, que ocorre numa espécie de camarim de uma boate, também obedece a forma de narrativa aristotélica e traz ações que se passam na mente da personagem que se encontra com ela mesma mais jovem em seus devaneios. 

Ambientada pelo grupo em 2018, a obra traz à cena no papel de uma mulher trans a atriz Ella Becerra e faz suscitar uma discussão que está em voga no Brasil.  Coletivos LGBTs vêm reivindicando que personagens transgêneros retratados em peças, filmes e novelas sejam representados por atores e atrizes trans. É chamado “transfake”, à prática de atores cisgêneros (pessoas que se reconhecem no gênero de nascimento) interpretarem personagens trans e travestis e remete ao blackface. “Precisamos falar sobre empregabilidade, transfobia e representatividade e sobre essa tal liberdade artística (...) parem agora de nos representar (estanquem esta sangria) por no mínimo 30 anos. E sabem o que vai acontecer ao final de 30 anos? Nós vamos parar de morrer. Vão parar de nos matar. Simples assim. (...) porque nossas identidades, corpos e presenças serão naturalizadas e humanizadas nos espaços de poder (...)”, trecho do manifesto da MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans).

Como está o debate na Colômbia? O que artistas trans e cis pensam a respeito? Como o grupo se posiciona sobre o assunto? São questões que devem ser discutidas (se é que ainda não foram) em outros países da América Latina.

Por fim, apesar do grupo propor uma mudança nos pressupostos da linguagem, muitos processos são semelhantes com o das outras encenações da companhia fundada em 2009, entre eles, a condição de passividade do espectador. A montagem não deixa nenhuma lacuna para que o público produza seu próprio sentido da obra. Fica o questionamento: quais dispositivos na encenação ou na dramaturgia podem ser ativados para que o espectador consiga manter um certo distanciamento reflexivo e não seja levado a um estado puramente emotivo?

 

*Michele Rolim é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é idealizadora e editora do site AGORA Crítica Teatral, e autora do livro “O que pensam os curadores de artes cênicas” (Editora Cobogó)