ENSAIOS SOBRE O ATO DE OLHAR

Por Julia Guimarães*

Na dramaturgia do artista franco-uruguaio Sergio Blanco, há sempre um jogo com duplos. O ator e o personagem, a pessoa e o escritor, a realidade e a invenção. Em suas entrevistas, Blanco costuma dizer que o teatro seria a arte do século XXI justamente por seu investimento sobre o ato de mirar – e não exatamente sobre a imagem, a exemplo do que ocorre no cinema. A partir dessa perspectiva, suas obras buscam refletir sobre como enxergamos a nós mesmos e aos outros. O que também explica seu flerte constante com o campo da autoficção – caracterizado por mesclar acontecimentos reais e ficcionais – e pela decisão de fazer de si mesmo o protagonista de muitas de suas peças.  

Em El Bramido de Düsseldorf, espetáculo que se apresentou no Mirada 2018, a construção desses duplos é atravessada pela iminência da morte do pai. A trama se passa durante uma viagem com o filho na cidade de Düsseldorf, na Alemanha, onde sofre um ataque cardíaco e é internado em um hospital. Entre uma visita e outra ao pai hospitalizado, o personagem de Sergio Blanco brinca de propor à plateia diferentes versões sobre o que o teria levado àquela cidade. Trata-se de uma escolha que explicita desde o início o chamado “pacto da mentira” proposto ao espectador em sua autoficção.

Em uma das hipóteses, o artista estaria escrevendo o catálogo de uma controversa exposição sobre o serial killer Peter Kürten (1883-1931), também conhecido como “O vampiro de Düsseldorf”. Em outra, teria sido convidado por uma grande produtora de cinema pornô a produzir o roteiro de seu novo filme. A visita poderia ter sido motivada ainda pela cirurgia de circuncisão que o dramaturgo fará como parte do rito de conversão ao judaísmo, para a qual precisaria de autorização do rabino da cidade. Todas as três versões são encenadas no interior de uma caixa branca, em cenário que remete tanto ao ambiente asséptico dos hospitais como dos museus.

Pelo pacto estabelecido, a veracidade de cada uma delas não importa muito. E sim o modo como projetam uma reflexão sobre o lugar da moral e da ética na arte e nas relações contemporâneas. No entanto, ao contrário de outros trabalhos, aqui aparece também uma informação verídica que perpassa toda a obra desde a sua sinopse e parece relacionar-se à própria problematização ética explorada na peça: a de que El Bramido de Düsseldorf foi criado em homenagem a um jovem chileno que se matou depois de assistir a uma obra anterior de Blanco, A ira de Narciso.

A despeito da complexidade das questões que aborda, o espetáculo não se apresenta de forma hermética ao espectador. Há um jogo constante de sedução com o público que se inicia com o uso de músicas do repertório pop internacional – como Losing my religion, do REM, e Mrs. Robinson, de Simon & Garfunkel – cantadas pela única atriz do espetáculo, Soledad Frugone. Também faz parte desse jogo a rebuscada construção metalinguística da dramaturgia. Como nas passagens em que o pai de Sergio (interpretado por Walter Rey) reclama do modo como o filho (interpretado por Gustavo Saffores) constrói seu personagem. Ou quando o ator que interpreta Sergio Blanco explicita um ponto em comum com o dramaturgo e diretor: o sonho de aprender a tocar baixo.

Aqui, a reflexão sobre o olhar alcança camadas que transitam entre a esfera privada e a pública. Ela nos permite compreender, por exemplo, detalhes significativos da relação entre pai e filho, quando o primeiro comenta o prazer de fazer a cena em que o filho aperta sua mão na ambulância a caminho do hospital. A partir desse exercício metalinguístico, o que aparece é um jogo de projeções múltiplas, não apenas vinculada ao modo como o filho enxerga o pai, mas também sobre como o pai se relaciona com a construção autoficcional que o filho faz dele. Trata-se de uma estratégia que evidencia a centralidade das projeções imaginárias em qualquer relação intersubjetiva. E também o modo de funcionamento do próprio processo de uma escrita dramatúrgica.

A pergunta sobre ato de olhar estaria presente também nas atividades que teriam levado Blanco a Düsseldorf. Ao expor em cena os bastidores da indústria de entretenimento que mais cresce no mundo – a da pornografia – o espetáculo tece um paralelo revelador para se pensar os limites da arte. De um lado, aparece a discussão sobre o modo como os filmes pornôs exploram tabus sexuais – o que, no limite, alude à própria dimensão amoral do desejo. De outro, a dramaturgia sublinha a ausência de escrúpulos morais no trato com os atores e atrizes que trabalham no ramo, submetidos a diversas drogas para aumentar seu rendimento durante as gravações. Um paralelo que parece discorrer sobre a importância de não descolar a discussão da moral dos contextos nos quais ela surge problematizada. E o mesmo poderia valer para o campo da arte.

Essa perspectiva surge contraposta pelo olhar de personagens que subjugam a perspectiva moral à perspectiva econômica. Como no caso da empresária de filmes pornôs, quando descreve sua atividade: “Nosso negócio é representar o prazer para além de qualquer tipo de moral”. Ou do pai de Blanco quando o filho expressa seu pudor em trabalhar nessa indústria: “Te pagam bem? Então não precisa ter vergonha de nada”.

A reflexão provocativa acerca dos limites éticos da arte – tema reiteradamente problematizado nas discussões sobre a autoficção – aparece também no contexto da exposição sobre Peter Kürten. Enquanto limpa o martelo que foi usado pelo serial killer para agredir uma de suas vítimas, a personagem de uma restauradora do museu se mostra interessada pelas ideias lançadas por Blanco no texto do catálogo, acerca da correspondência entre o modo de funcionamento do capitalismo e dos assassinatos de cada época. Mas também alerta para as polêmicas que a exposição já começou a suscitar, por converter em arte a trajetória de um serial killer. Quando questionado sobre a decisão controversa do museu, o personagem do escritor é enfático: “Na arte não existe nenhuma moral”.

As consequências dessa postura, assim como suas possíveis origens, são exploradas tanto no diálogo com o rabino de Düsseldorf, como nas cenas em que o personagem Blanco se despede do pai no hospital ou recebe a visita da mãe do chileno que se matou após ver sua obra. Na primeira, o horror traumático do nazismo aparece na fala do rabino, que mostra no braço a marca de sua passagem pelo campo de concentração de Auschwitz. Ao contar que o corpo de sua família foi usado para produzir sabão durante o nazismo, é enfático em sua crítica à decisão do personagem-escritor de incluir sua história na peça: “Há coisas que não estão para além da moral”.

É a própria busca por algum tipo de limite que parece levar o protagonista a aproximar-se do judaísmo. Essa visão aparece na fala de seu pai, que associa a obsessão do filho em converter-se em judeu com a necessidade de uma rigidez moral que nunca lhe foi dada em sua educação familiar.

Também no diálogo com a personagem da mãe do jovem suicida, o ato de transformar histórias extraídas da realidade em cenas de teatro surge problematizado. Assim como o rabino, ela se opõe a aspiração de Blanco por convertê-la em personagem de sua próxima obra, O Bramido de Düsseldorf. Trata-se de uma passagem em que o “pacto de mentira” proposto com o espectador surge como um problema, ao relacionar-se a um episódio traumático que parece desautorizar o jogo autoficcional, devido à sua gravidade. No entanto, é esse pacto de mentira que dita as regras do jogo, e assim será até o final.

Embora o personagem do dramaturgo se mantenha implacável em sua decisão de fazer da arte um território de liberdade irrestrita, os acontecimentos que sucedem em sua vida parecem reforçar o contrário. Seja na referência aos diversos processos judiciais que terá de responder por suas atividades em Düsseldorf, seja pelos efeitos depressivos decorrentes da morte do pai, pela “recaída” que o leva a uma clínica de reabilitação, o fato é que a dramaturgia construída parece contrapor a defesa pela autonomia da arte presente na voz do protagonista com as consequências legais e traumáticas dessa escolha. O que ganha peso ainda maior quando sobrepostas à informação verídica do suicídio do jovem chileno após ter visto a obra de Blanco.

Nesse sentido, a referência à agonia sonora produzida pelo cervo no momento de sua morte – quando solta um bramido particular – parece servir de metáfora ao próprio peso daquilo que Lacan chama de “real traumático”, uma dimensão irrepresentável, antevista somente pelos sintomas que produz e pelos limites que impõe. A referência ao título é descrita justamente na última cena, em que o escritor encontra a mãe do jovem e juntos conversam sobre a angústia da solidão.

Também nessa cena, é possível vislumbrar ecos de uma entrevista de Sergio Blanco, na qual afirma que o papel do dramaturgo seria aquele de encontrar a “palavra que cura”. E talvez seja essa espécie de fé na arte que o leva a seguir suas explorações pelo polêmico campo da autoficção. Sem, contudo, abrir mão de examinar as questões éticas decorrentes dessa escolha na mesma medida da complexidade que parecem demandar.

 

*Julia Guimarães é pesquisadora, professora, crítica teatral e jornalista. É pós-doutoranda em Artes Cênicas na UFMG – onde atua como professora colaboradora – e concluiu seu doutorado na mesma área pela ECA/USP, com pesquisa em teatro contemporâneo. Integrou as equipes de críticos dos sites Horizonte da Cena (MG) e Teatrojornal (SP).