Por Maria Eugênia de Menezes*
Depois de percorrer os clássicos da literatura brasileira, as obras de Nelson Rodrigues e as tragédias gregas, o diretor Antunes Filho encontrou na dramaturgia de Jean-Luc Lagarce (1957-1995) – o grande nome do teatro francês contemporâneo – a matéria-prima para seu novo espetáculo. O público do Mirada assistiu à estreia nacional de Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse, montagem que cumpre, a seguir, temporada no Sesc Consolação, em São Paulo.
A escolha de Antunes pela obra do autor, identificado a uma corrente do teatro performativo e pós-moderno na qual poderíamos incluir Bernard-Marie Koltès e Valère Novarina, pode causar algum estranhamento inicial. Mas mostra-se bastante coerente quando examinamos as relações que Lagarce estabelece com a tradição teatral. Além dos vínculos com Samuel Beckett e com Eugène Ionesco – particularmente evidentes em suas primeiras criações – o dramaturgo também pode ser visto como forte herdeiro de Anton Tchekhóv e dos gregos clássicos.
Após muitos anos distante, o filho caçula de uma família, enfim, retorna à casa. Lá, estão cinco mulheres que passaram todo esse tempo a esperá-lo. Porém, no momento em que adentra o antigo lar, o homem desmaia. Antes de dar qualquer explicação – seja para sua ausência prolongada, seja para o seu retorno. Aparentemente, está muito doente e retornou apenas para morrer. É imediata à relação dessa mãe e suas filhas com a figura de Penélope à espera de Ulisses. Pela maneira como mencionam sua viagem, diríamos que supõem uma odisseia. Uma jornada repleta de perigos e aventuras: um percurso em tudo diferente ao que foi relegado a elas, a quem coube apenas espera e resignação.
A correspondência entre as personagens de Eu Estava em Minha Casa... e algumas das principais mulheres da mitologia – Clitemnestra, Efigênia, Electra – não só são captadas pela montagem como amplificadas por algumas escolhas. Responsável pela cenografia e figurinos, Simone Mina opta por vestir a mãe e a mulher mais velha com vestidos negros, quase hábitos religiosos. Imagens que levam o espectador a rememorar criações anteriores do diretor, como Fragmentos Troianos (1999), sua versão para As Troianas, de Eurípedes.
Em suas rubricas, Lagarce sugere uma caracterização sem distinções. Na versão do CPT, porém, se os figurinos não servem propriamente para caracterizar os papéis, cumprem a função de distinguir suas idades. De um lado, estão as mulheres mais velhas, enlutadas, com as cabeças cobertas por véu negro. Do outro, uma gradação que vai da sobriedade da irmã professora, trajada de preto e branco, à aparência infantilizada da mais nova, com flores a adornar o chapéu.
As movimentações reforçam a sensação de que o encenador pôs em movimento nessa criação muito de seu arcabouço estético, como se viesse reforçar a já reconhecível assinatura de sua mise-en-scène. No palco, estão espalhadas muitas cadeiras de feição hospitalar. Nada do que se vê sugere nenhuma localização geográfica. A primeira irmã que surge em cena (nenhuma delas têm nome) refere-se à visão de um campo, de um bosque – a plateia, contudo, não terá nenhum vestígio de onde ou quando isso se passa.
“O homem em sua condição universal e intemporal”, é isso que Lagarce ambiciona capturar com sua peça e sua proposta, também por essa via, se mostra coincidente com a do diretor. É interessante a maneira peculiar como o autor coloca em prática essa sua ambição: desestruturando tanto a ação quanto o tempo. A partir de determinado momento da trama, não sabemos mais se as personagens falam do futuro ou do passado. Trata-se de um deslocamento radical provocado com grande engenho, apenas pelo uso dos tempos verbais.
Uma das obsessões do trabalho de Antunes Filho é a voz. Não apenas o seu cuidado em fazer com que todas as palavras pronunciadas em cena sejam perfeitamente compreendidas, mas a preocupação em tonalizar a voz dos intérpretes. Vista sob esse aspecto, a peça francesa é também um prato cheio para o diretor.
Como se tivesse composto uma obra musical para cinco vozes, Lagarce investe em repetições a partir de um único leitmotiv: a espera. Acompanhamos um desfiar de monólogos, todos muito parecidos. O dramaturgo lança um ritmo, convite a que o encenador adere por completo. Toda a beleza de sua métrica particular fica exposta e fica ao espectador o convite para vivenciar o tempo, em seu encanto e em sua aflição.
*Maria Eugênia de Menezes é crítica teatral formada em jornalismo pela USP, editora do site Teatrojornal – Leituras de Cena e colaboradora do Estadão, jornal onde trabalhou de 2010 a 2016.