Por Julia Guimarães*
A exemplo de outros projetos do grupo colombiano La Maldita Vanidad – alguns deles já apresentados no Brasil – os espetáculos que integraram a programação desta quinta edição do festival Mirada são frutos de uma mesma investigação. Pensados como um díptico, ambos compartilham a pergunta sobre o lugar do drama intimista e “neo-costumista” na cena contemporânea, com foco nas ações que se passam na memória e no imaginário de suas personagens. Para isso, exploram protagonistas angustiados e inertes, presos ao próprio passado e confinados no interior de espaços asfixiantes. Não por acaso, as duas obras utilizam o mesmo cenário, modificado apenas pela presença dos objetos ali expostos: um cômodo escuro, sem janelas e com teto baixo, revestido com papel de parede em estampas florais.
Os aspectos citados acima poderiam ser vistos como eixos de atravessamentos do díptico intitulado Dramas neo-costumbristas de carácter fatal. Embora explorem contextos, personagens, temáticas e períodos distintos – ou seja, possuem autonomia para ser vistos separadamente – foram apresentados em sequência durante o Mirada 2018, o que produz sentidos específicos à sua recepção.
O primeiro deles, Nos hemos olvidado de todo (drama 1), se passa em 1978 e traz a história de um jovem à beira do suicídio, endividado e depressivo. Na trama, a história nos é contada de trás pra frente e modifica-se a cada entrada das personagens no quarto de hotel onde mora. Ivan está prestes a casar-se, mas não enxerga um sentido nesse ato, nem tampouco em outros aspectos da sua vida. Ele recebe ainda a visita fantasmagórica de Ana, com quem esteve casado e que faleceu subitamente, vítima de uma doença.
Já em Promesa de fin de año (drama 2), que fez sua estreia mundial nesta edição do Mirada, o estado de angústia e depressão da protagonista também diz respeito aos acontecimentos do passado. Sequestrada e levada a um prostíbulo ainda adolescente, quando se chamava Silvio, a personagem Silvana foi submetida por seus cafetões a cirurgia de mudança de gênero e agora deseja voltar à condição de homem. As duas obras têm direção e dramaturgia de Jorge Hugo Marín.
Assim como em trabalhos anteriores do La Maldita Vanidad, o espectador é colocado em um papel que remete à tradição do drama. Trata-se do imaginário do voyeur, que espia pelo buraco da fechadura a atmosfera intimista do palco, numa encenação estruturada pela presença da “quarta parede”. No entanto, como atesta a própria referência que serviu de inspiração à primeira parte do díptico – a última cena da peça Ivanov, do dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904) – o investimento aqui recai sobre as ações interiores das personagens, elemento característico do drama moderno pela primeira vez explorado em obras do grupo colombiano.
No díptico escrito por Marín, parece haver uma constante luta dos protagonistas consigo mesmos para romper o ciclo de inércia e depressão que os impede de sair do lugar. Ações como subir nas paredes do quarto ou colocar-se de ponta-cabeça enquanto repete uma recitação budista traduzem os impulsos de Ivan para livrar-se da própria angústia em Nos hemos olvidado de todo. É também no encontro com as personagens femininas de Ana e Sara que alguma faísca de vida parece emergir, sobretudo relacionada ao desejo sexual. Ou quando recebe de Sara seu antigo violino e se imagina tocando de novo o instrumento. Trata-se de pulsões que, no entanto, rapidamente se dissipam em cena, diante da impossibilidade de recuperação do passado. “Fui algo que não posso ser mais”, lamenta o protagonista.
Já em Promesa de fin de ano, que se passa em 2018, é a própria movimentação cênica de Silvana que parece metaforizar a dimensão cíclica de seu estado interior. Deitada no colchão de uma sala, misto de depósito e camarim do bar onde trabalha, a personagem está visivelmente alcoolizada. Com grande esforço, busca colocar-se de pé, apoiando-se nos móveis e objetos ao seu redor, sem muito sucesso. Nas poucas passagens em que esboça algum gesto de transformação, a personagem está sob efeito da cocaína fornecida por seu cafetão. O jogo decadente de oscilar entre inércia e desejo de ruptura remete ainda ao próprio título da montagem: todo mês de dezembro, Silvana reitera a promessa – nunca cumprida – de que irá sair pela porta do bar, deixar a prostituição e nunca mais voltar.
No decorrer das tramas, algumas informações sobre as personagens dão pistas dos contextos que a levaram ao estado limítrofe observado nas cenas. No drama I, além da morte súbita de sua antiga esposa, é o tema do endividamento que aparece como uma das razões para o anestesiamento da subjetividade de Ivan. Descobrimos que o personagem deve dinheiro à mãe de sua noiva e tem problemas com os negócios de sua fazenda. O confinamento no quarto do hotel, assim comodificuldade de relacionar-se com Sara, parece dizer respeito a essa ocorrência tão frequente quanto problemática da vida contemporânea, que é o ato de endividar-se. “Não posso nem cruzar as portas desse hotel, quanto mais ir pra Europa”, comenta Ivan com a noiva, em frase que associa o confinamento subjetivo à condição do endividado.
Já no caso de Silvana, o estado de absoluta precarização de seu corpo e de sua subjetividade parece dialogar com outro aspecto que também pode ser visto como efeito da própria lógica econômica capitalista: a transformação do corpo em mercadoria. Nesse sentido, uma das cenas mais significativas do espetáculo é aquela em que observamos o dia da chegada de Sílvio ao prostíbulo. Quem lhe ensina os modos de vestir-se e portar-se para atrair clientes é outro adolescente, o cafetão filho do dono do estabelecimento. “O importante é como você se mexe”, instrui, numa cena que explora a performatividade de gênero para projetar a fabricação de um corpo lucrativo.
Ao rever seu próprio passado, Silvana fabula um reencontro com a mãe e com o gênero que lhe foi sequestrado junto com seu próprio corpo: “Nunca esteve nos meus planos deixar de ser homem”. Ao fazer da mudança de gênero o tema para um de seus “dramas de costume”, o grupo La Maldita Vanidad traz à tona um assunto extremamente atual não somente à esfera pública brasileira, mas também à própria classe artística.
De um lado, é interessante observar a perspectiva singular que a obra traz à discussão, ao expor um personagem que deseja recuperar a identidade de gênero original. Trata-se de uma imposição às avessas daquela usualmente vista nos dramas sociais dentro e fora da cena, já que o desejo da personagem não é modificar o gênero ao qual foi associada no nascimento e sim recuperá-lo.
Por outro lado, a decisão de retratar esse drama sem convidar uma pessoa trans para representar a protagonista Silvana (interpretada pela atriz Ella Becerra) reitera o problema do transfake - prática na qual atores e atrizes cisgêneros interpretam personagens trans e travestis. O termo ganhou espaço e debate na esfera pública brasileira a partir do ano passado, quando o Movimento Nacional de Artistas Trans publicou um manifesto criticando a prática. O texto faz um apelo para que artistas trans tenham mais oportunidade e representatividade na arte, já que é o grupo com a expectativa de vida mais baixa da população brasileira e um dos mais excluídos do mercado de trabalho.
Diante da urgência desse chamado faz-se necessário propor questionamentos ao grupo colombiano La Maldita Vanidad: por que não convidar uma pessoa trans para interpretar este papel? Houve alguma reflexão a esse respeito durante a escolha do elenco? Qual é a situação das pessoas e artistas trans na Colômbia? O fato de a obra passar-se em 2018 não seria um aspecto a reforçar essa necessidade, dada a atualidade do problema da representatividade em nível internacional?
A violência contra a pessoa trans é retratada também na última cena de Promesa de fin de año, quando Silvana leva uma facada na barriga por um motivo banal, o que reforça o lugar descartável do corpo marginalizado na sociedade. Também na primeira parte do díptico, o ciclo de luta contra a inércia depressiva culmina em um desfecho trágico, o suicídio de Ivan.
A metáfora do esquecimento presente no título do primeiro drama parece relacionar-se à dimensão cética e niilista do protagonista quanto à possibilidade de transformação. “Os homens que mudaram a história viraram mármore corroído. A história mesma tratou de engoli-los”, comenta Ivan. É também esse vazio existencial que o impede de sair de si e relacionar-se com o outro: “quando me chega a tristeza, começo a não te amar mais”, declara à sua noiva.
Se a primeira parte do díptico se aproxima da galeria dos anti-heróis techekhovianos, fracos e entediados, a segunda poderia dialogar com as personagens marginais e decadentes da dramaturgia de Plínio Marcos (1935-1999). Aliás, o diálogo com referências do século XX também leva a perguntar-nos em que medida a companhia colombiana de fato confere atualidade ao gênero dramático no retrato dos costumes. É certo que o investimento no realismo e a construção de histórias centradas no espaço privado são alguns dos pilares da linguagem do grupo para discutir temáticas atuais. No entanto, ao contrário de outros trabalhos já apresentados no Brasil, falta aqui um investimento sobre o olhar do espectador que projete outras perspectivas ao gênero para além daquelas já conhecidas.
*Julia Guimarães é pesquisadora, professora, crítica teatral e jornalista. É pós-doutoranda em Artes Cênicas na UFMG – onde atua como professora colaboradora – e concluiu seu doutorado na mesma área pela ECA/USP, com pesquisa em teatro contemporâneo. Integrou as equipes de críticos dos sites Horizonte da Cena (MG) e Teatrojornal (SP).