Por Pollyanna Diniz*
Até que o acordo de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) fosse assinado passaram-se 52 anos. Em La Despedida, espetáculo do grupo Mapa Teatro apresentado nesta edição 2018 do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, vemos imagens do primeiro documentário francês sobre as Farc, de 1964. Trazendo os números de mortos no conflito até então, o texto do documentário fala algo do tipo: “a guerra civil é uma tradição nos países da América Latina”.
A frase incisiva dita há tantos anos mexe de alguma forma na nossa autoestima como latino-americanos, vivenciando ainda hoje a violência cotidianamente em suas variadas formas. Parece que caminhamos muito pouco. Ao mesmo tempo, em qualquer lugar do mundo, as violências não acabam somente com assinaturas de acordos de paz. Aliás, são muitas as contradições desse processo colombiano. Basta dizer que, em 2016, o governo realizou um plebiscito com a seguinte pergunta: “Você apoia o acordo final para o fim do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura? ”. 50,2% dos colombianos disseram “não”, mas apenas 37% da população participou da votação.
O espetáculo do Mapa Teatro trabalha com essas contradições através de uma linguagem que mistura teatro, artes visuais e audiovisual, carregada de alegorias e autoironias que ampliam as possibilidades de olhares sobre o conflito armado e o fim de uma utopia socialista, principalmente tendo como foco a América Latina. La Despedida é o trabalho mais recente de um projeto chamado Anatomia da Violência na Colômbia que, nos últimos oito anos, investigou as relações entre festa e violência no país a partir de três prismas: os guerrilheiros, os paramilitares e os traficantes de drogas.
No espetáculo, a festa é num antigo acampamento de guerrilheiros no meio da floresta, reproduzido numa instalação com plantas, seres da mata e estátuas de mitos da revolução socialista. As cenas que estão acontecendo nessas instalações são projetadas na tela, assim como imagens e áudios reais, como um trecho do último discurso de Fidel Castro, no Congresso do Partido Comunista em Cuba, em 2016.
O dado de realidade utilizado como disparador do argumento do espetáculo está reproduzido em vídeo: um antigo acampamento das Farc, chamado El Borugo, foi aberto para receber visitas de jornalistas do mundo inteiro, guiadas pelos militares durante um ano de trégua entre as Farc e o governo. É completamente contraditório, mas os militares – que lutaram esse tempo inteiro contra o regime – assumem o lugar de atores e encenam o que seria a “realidade” de um acampamento, com direito à exibição de armas apreendidas no local, representações de assassinatos e de personagens reais, como o comandante Mono Jojoy. Talvez seja algo parecido com as visitas dos turistas pelas favelas do Rio de Janeiro. Um cenário “exótico” aberto à apreciação dos gringos de tênis e câmera fotográfica nas mãos. Só faltava ter os policiais encenando os traficantes.
Se o Teatro Colón, em Bogotá, foi o local escolhido para a assinatura de acordos de paz, o espetáculo questiona em algum momento em seu texto: como o teatro da guerra cede lugar ao teatro da memória? E ainda: que memória é essa? É óbvio que há uma versão da história escolhida para ser reproduzida neste acampamento transformado em “museu cênico etnográfico”, o que o Mapa Teatro explicita com perspicácia quando diz que as palavras têm sentidos diferentes para pessoas abastadas e pessoas pobres e dá alguns exemplos. “Violência”, para a classe alta, significaria “banditismo”; para a classe baixa, “inconformismo”. Existe uma guerra das memórias, de versões do real que tentam se impor umas sobre as outras. No campo da realidade, essa espetacularização dos ex-guerilheiros pelos soldados tinha o objetivo claro de apontar um lado da história, de tornar a versão dos militares definitiva para o mundo – já que o acampamento foi aberto no intuito de receber jornalistas.
Nesse sentido, o espetáculo vai despertando questões sobre como se dá a construção da nossa memória política. Como os colombianos e, mais amplamente, os latino-americanos lidam com a memória recente de atuação das Farc? E como se dá a reelaboração e a transmissão da história das revoluções socialistas?
Líderes como Che Guevara, Fidel Castro e Simon Bolívar são representados como estátuas, figuras sem vida que nos acostumamos a ver nos museus, praças, transformados em monumentos. No espetáculo, jogam dominó e fazem referência a Mao, ou têm trechos de suas falas públicas reais reproduzidos. Mas, deliberadamente, todos os trechos escolhidos se revelam esvaziados, trazem pouca ou quase nenhuma potência revolucionária.
Há aí uma problematização acerca da utopia das revoluções e ainda um questionamento sobre como essa memória socialista foi sendo processada e apreendida ao longo dos anos. A massificação do rosto de Che Guevara nas camisetas dos adolescentes ao redor do mundo talvez seja um sintoma das dificuldades de construção da memória coletiva, do apagamento da história política. A música cantada pela atriz de vestido de paetês vermelho e parka militar traz a camada de ironia. A música começa com a afirmação: “Eu sou rebelde porque o mundo quis assim”. Será que não tínhamos motivos reais para lutar? Por quais revoluções lutávamos mesmo? E no que elas se transformaram hoje, com o passar dos anos?
É uma festa de despedida de uma utopia, a despedida de uma revolução que efetivamente nunca aconteceu. E, por isso, ao mesmo tempo em que o espetáculo é impactante visualmente, alegórico, festivo em meio a tantas referências históricas, carrega em si uma melancolia profunda. A imagem da Miss Universo que teve a coroa abruptamente retirada da sua cabeça, depois de ouvir que o resultado do concurso havia sido um equívoco, é a metáfora perfeita, escancarada ao público, do declínio de um sonho que não viraria realidade.
*Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), é idealizadora e editora do blog Satisfeita, Yolanda?, especializado em críticas e notícias de Artes Cênicas.