Por Valmir Santos*
Uma obra de arte pode navegar pela realidade histórica mais sangrenta sem derrubar única gota cênica de sangue, atesta mais uma vez o grupo colombiano Teatro Petra.
O que se revelou um achado em Mosca (2002), com lutas de espada e corpos perfurados ou despedaçados em meio a legumes e verduras, numa livre apropriação da tragédia (leia-se carnificina) Titus Andronicus, de Shakespeare, alcança níveis ainda mais surpreendentes em termos de linguagem em Labio de Liebre (Lábio de Lebre, 2015).
Dessa vez, a ficção parte do material histórico das graves violações de direitos humanos, no contexto colombiano, sem a preocupação de tratá-los com a objetividade dos fatos. O terreno subentendido é o do pesadelo, apesar do onirismo latente. E o resultado dramatúrgico, por analogia, atinge a carne da memória e do presente em países latino-americanos marcados pelo efeito volátil das violências empregadas por terrorismo ou por ditadura, quando não por ambos.
O texto de Fabio Rubiano é permeado de imagens comuns a relatórios de comissões da verdade. Direta ou indiretamente, alude a detenções ilegais e arbitrárias, violência sexual, violência de gênero, violência contra crianças e adolescentes, execuções e mortes decorrentes de tortura, chacinas e homicídio como prática sistemática, sem jamais conformar-se com diálogos realistas.
A narrativa e a encenação de Labio de Liebre são construídas por estruturas metafísicas. Um senso perpétuo de irrealidade engendra estranhamento em todos os planos. Há entradas e saídas para o encanto, para o tragicômico, para o humor abrasivo.
Um assassino confesso cumpre prisão domiciliar pelos crimes que cometeu. Afinal, ele matou muita gente a soldo de instituições ou de facções, não se sabe ao certo. Por determinação jurídica, encontra-se exilado num país onde neva, paisagem oposta do seu, dito paraíso tropical.
É sob o frio cortante que terá a casa-prisão tomada pela família camponesa que executou sob a suspeição de que seus integrantes, inclusive o marido oculto, favoreciam “o inimigo”. Isso segundo peças no tabuleiro de quem manda e paga no submundo do crime, da política, do narcotráfico, do mercado de ações.
No xadrez de metáforas e fabulações montado por Rubiano, os territórios – gélido e branco do local e quente e verde do bosque – são cada vez mais entranhados.
A mãe, os dois filhos e a caçula constituem a família Sosa, seres fantasmais que agora pegam no pé de Salvo Castello, cobram-lhe reconhecimento. O homem se pensa quites com a consciência porque teria cumprido seu dever. Argumenta que sempre esteve a mando, não fez o serviço sujo por vontade própria.
Na ausência de um narrador que alinhe o jorro de absurdos (ele não faz falta, diga-se), o potencial de leitura fica por conta e risco do espectador, também ele estimulado pela encenação sensorial de Rubiano.
Os jogos de visualidade incluem vinhetas no desenho de luz que duram segundos e promovem quebras de percepção. A cenografia é um capítulo à parte, personagem viva. A direção de arte de Laura Villegas evolui entre os móveis realistas e o habitat mutante, como a natureza, ratificada pelas presenças de bichos caracterizados e folhagens, apagando as noções de dentro e fora da casa que parece fisicamente suspensa.
Tudo nessa experiência se estabelece por fissuras, como a fenda congênita do lábio a que o título da obra faz referência (uma das vítimas redivivas estava com a cirurgia marcada para tratar da patologia, em criança, antes de ser assassinada).
As subversões de tempo, espaço e ação – aos poucos viram uma coisa só – dão margem à massa documental implícita. Atos de nomear, de reconhecer e de perdoar vinculam-se profundamente e ecoam os conflitos cotidianas na cidade, no campo e na selva.
Não foi por acaso que nas décadas de 1980 e 1990 países da América do Sul e da América Central instituíram comissões da verdade. No período, “a responsabilização criminal se encontrava bloqueada pela edição de leis de anistia”, como consta do valioso relatório brasileiro da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014.
A iniciativa civilizatória replicada em mais de 30 países viabiliza “de maneira mais efetiva a revelação e o registro da violência causada por agentes estatais, ou com a sua aquiescência, desautorizando falsas versões ou a negação dessa violência”.
Em seus 31 anos de trajetória, o Teatro Petra mostrou na abertura da atual edição do Mirada que desaparecimento, reconciliação e esclarecimento são noções que precisam ser problematizadas. A presença de uma jornalista a mediar a barbárie nesse enredo – ela também foi executada por contrariar interesses – reflete a relevância do tema para a sociedade.
A família Sosa não prega vingança, mas o reconhecimento do crime de lesa-humanidade. Que o sujeito os chame pelos nomes, é o mínimo. Lembrar, resistir. Pois perdoar é o verbo inquiridor do carrasco em seu desespero final, ao qual o espetáculo não responde, mas deixa no ar o que não quer calar.
Labio de Liebre concretiza uma teatralidade que condiz com o grau de inquietude que propõe. Na primeira noite houve imprecisões nas marcações dos atores, e elas não são poucas. O que não ofuscou a atuação de Marcela Valencia como a matriarca Alegría de Sosa, atriz e figura dinamizadoras dessa engrenagem.
*Valmir Santos é jornalista, crítico e pesquisador. Idealizador e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Mestre em artes cênicas pela USP