Por Michele Rolim*
Você considera que tem uma vida ordinária ou extraordinária? a pergunta feita pelo ator Thiago Amaral a um dos espectadores da peça "Odisseia", já dá uma ideia do que o público vai encontrar na montagem da Cia. Hiato: uma mistura de aventura épica com as histórias particulares dos atores. Uma jornada heroica, mas também pessoal.
A "Odisseia", poema épico de Homero escrita por volta do século VIII a.C, conta a história de Odisseu, também chamado de Ulisses, que parte para a Guerra de Troia que durou uma década e, após torna-se herói da batalha, leva mais outros dez anos para retornar a sua casa, a ilha de Ítaca.
A Cia. Hiato de certa forma retoma com essa montagem o seu primeiro trabalho - criado em 2008 - que projetou o nome de Leonardo Moreira como um dos novos autores de destaque na cena paulista, a peça "Cachorro Morto", a montagem mistura uma história pessoal com a literatura. Depois veio peças como "O Jardim" (2011) que utiliza a biografia dos atores falada por outros integrantes do elenco para compor a história de três gerações de uma mesma família. E "Ficção" (2012), série de cinco monólogos em que os atores falam de si mesmo e é colocado em cena um grau mínimo de ficção para criar outra ficção.
De volta à mescla entre relatos pessoais e a literatura - forma que deu origem ao embrião de tudo que o grupo realizaria nos espetáculos seguintes - a Cia Hiato propõe nesta montagem provocar uma aproximação do mito com o homem comum e, dessa forma, aproximar espetáculo e plateia. E funciona.
O grupo constrói um jogo com o espectador sobre o limite muito tênue entre memória e a imaginação. A montagem, alimentada de memórias autobiográficas, leva o espectador a sentimentos diferenciados daqueles que um espetáculo totalmente ficcional provocaria.
A Odisseia da Cia Hiato é feita em solos em que cada um sobe à sua vez no palco para contar uma história que tenha relação com alguma personagem da jornada mítica de Odisseu.
A trama, que dura quase cinco horas, começa com relatos bem pessoais e aos poucos a narrativa literária vai sendo introduzida. O personagem Odisseu é feito pelo público ora em ações individuais ora em coletivas, sempre conduzidas pelos atores.
Ainda que o mecanismo de participação não coloque o público como protagonista da cena, o jogo entre atores e espetadores provoca uma cumplicidade na plateia. O público é recebido com bebidas (cachaça e água) e comidas (sopa e pão) criando um espaço de convivência e a arena em certo momento é transformada em uma boate ou no videokê, o que ajuda a criar uma estética relacional entre obra e espectador.
A releitura da Cia Hiato tem outro principal ingrediente: estabelece uma interpretação do ponto de vista das mulheres. São solos de cinco atrizes acompanhadas do ator Thiago, que fica encarregado de fazer uma espécie de mestre de cerimônias.
As histórias começam por Aura Cunha, produtora do grupo, que conta a história de seu pai que saiu de casa quando ela era criança comparando a Telêmaco, filho de Odisseu que cresce sem conhecê-lo. Na cena Aura começa lendo uma carta que sua mãe, Marilene Cunha, a entregou quando soube da criação da peça, uma carta nunca enviada ao pai de Aura e escrita no ano de 1987. Esse documento de memória irá perpassar toda a narrativa em diferentes momentos dando a costura necessária as histórias. Nela, diferente de da personagem Penélope da Odisseia, Marilene não espera o retorno de seu marido. “Tô sozinha, tô sozinha. Também tô muito mal, mas é vivência, é minha vida, e eu quero continuar viva. Eu quero continuar a vida.”, escreve em um dos trechos da carta.
A atriz Luciana Paes fala de uma desilusão amorosa e remete a Calipso, que manteve Odisseu com ela por sete anos, mas não conseguiu fazer com que ele desistisse de voltar ao seu lar.
Paula Picarelli vive a deusa Atena trazendo assuntos da política brasileira ao palco. Fernanda Stefansky aborda a incapacidade de seu pai de lidar com a aceitação e Maria Amélia Farah faz alusão a feiticeira Circe.
E por fim, aparece Penélope (Aline Filócomo), que questiona de forma contundente esse lugar da mulher, lugar de espera, de resiliência. “eu não tive direito a uma linha sequer de texto a respeito do que eu estava pensando ou sentindo. Chegou a hora. Demorou, mas chegou”, diz a atriz, que compartilha com o público áudios de mulheres que ficaram à espera de seus Odisseus.
Esse acontecimento teatral provoca uma aproximação da plateia com o que está sendo dito no palco causando a perda da aura da obra de arte (entendendo esse conceito conforme Benjamin). O espetáculo deixe se ser obra e se torna objeto artístico, não existe mais uma hierarquia entre atores e espectadores, há uma dessacralização do palco, o espectador é responsável na mesma medida pelo acontecimento teatral. E é o que acontece na encenação da Cia. Hiato, o espectador é um cocriador que elabora novos caminhos e propõe significados a partir da sua experiência. Muitas odisseias foram escritas em cada sessão deste espetáculo.
*Michele Rolim é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é idealizadora e editora do site AGORA Crítica Teatral, e autora do livro “O que pensam os curadores de artes cênicas” (Editora Cobogó).