Por Valmir Santos*
Não é de hoje que parte expressiva do teatro produzido para a infância e juventude estimula pais ou responsáveis a cultivar a inquietude com o espírito livre dos primeiros anos de formação. Convenhamos, dá trabalho modular assuntos complexos e corresponder com tratamento estético à altura do que se espera da obra de arte. Aquela que convida o espectador ao trabalho, na melhor acepção do substantivo, quando as proposições da equipe de criação faíscam os sentidos.
O espetáculo Hoje o Escuro Vai Atrasar Para Que Possamos Conversar pertence a essa turma que adora uma rima, mas não tem nada contra o pé-quebrado de um verso ou outro, sacudindo as formas fixas. Os 17 anos do Grupo XIX de Teatro (SP) estão como que decantados em sua primeira incursão pensada para o público infantil, mas não só.
A iminência da maioridade concede certos direitos. E por que não parir uma obra para essa faixa de público com o mesmo potencial de risco que caracteriza suas peças, digamos, adultas? Que tal discutir urbanidade, a relação do cidadão com os espaços de memória, a arquitetura do sujeito e seu entorno? Caráter também pede planta e alicerce? Por que não atravessar a fábula com a realidade, os estados de abandono, sem tirar a imaginação do poder?
Quem assistiu a Hysteria, Hygiene e Teorema 21, entre outros espetáculos do repertório, notou como a cidade plasma das subcamadas do cotidiano, das relações parentais ao entrelaçamentos amorosos, sempre condicionados pelos sistemas econômicos, políticos e sociais que regem as desigualdades, alargam as diferenças de classe e se encerram em castas com a ilusão de que os muros altos e as guaritas irão apartá-los do outro lado.
Hoje o Escuro Vai Atrasar... proporciona uma convivência imersiva nas dependências do Centro Português de Santos, como se viu numa das três sessões no Mirada. A encenação se inicia – e termina – no teatro tradicional à italiana. Mas logo se desfaz a relação do público sentado ante o palco, dando lugar a deslocamentos.
São percorridos espaços como um vetusto salão nobre, com suas pesadas mobílias imperiais e fotos em preto e branco emolduradas nas paredes, bem como uma passagem pelo lado de fora, até retornar ao começo. Dessa vez o público tem seu ponto de vista modificado a partir do tablado, o mar de poltronas vermelhas, seus corredores e mezanino para os quais as cenas são estendidas com atores lá e cá.
É assim que o trabalho itinerante abre clareiras no imaginário do público de todas as idades. E dialoga com muita propriedade com o livro De repente, nas profundezas do bosque (2005), de Amós Oz. O autor israelense relê as fábulas clássicas mantendo a narrativa com um pé na contemporaneidade. Margem para que a dramaturgia de Ronaldo Serruya, livremente inspirada na obra, coloque em relevo os desafios da coexistência, seja entre as pessoas, destas com a natureza, a aldeia e o bosque, a cidade e o campo, e assim caminham as antinomias.
Santi, Clara e Luna são alunos da professora Rafaela. As crianças vivem na aldeia e escutam o tempo inteiro os adultos falando mal do bosque. É lá, nas montanhas, que vive o espírito de-não-sei-lá-o-quê. E é para lá que teriam sido levados todos os animais. Simplesmente não há bicho na aldeia. A única pessoa que contraria essa sentença de morte aos demais seres vivos é a professora que, em criança, viveu e brincou muito com eles. Por isso evoca seus “cantos” e “falas” nas músicas que interpreta em sala de aula, ao violão. A garotada debocha da docente, acusam-na de desvario. Compreensível. Esses meninos e meninas nunca viram aves, mamíferos ou outras espécies.
Luna (interpretada por Juliana Sanches) é a que mais lhe dá ouvidos, também ela vítima de perseguição pelos coleguinhas. Certa vez, sonha com um pássaro e vai atrás dele. Sobe até a mata e desaparece. Santi (por Rodolfo Amorim) e Clara (por Janaína Leite), que lhe eram mais próximos, ficam inquietos com todo esse mistério e, corajosamente, decidem se aventurar pelo bosque no encalço de Luna. A dupla a encontra e se depara com um admirável mundo novo coabitado pelas diferenças e pelos diferentes, aprendizado que Rafaela (por Tarita de Souza) se esforçou em transmitir aos estudantes.
O subtexto dos malefícios da intolerância e a visão holística de estar no mundo são advindos da experiência concreta ao se encostar o ombro no vizinho da audiência, caminhar em fila, respeitar o tempo do outro, vestir as fantasias dos animais, usar lanterna na testa, encantar-se com os vaga-lumes na sala escura e solidarizar-se com o ímpeto expedicionário de Luna para sair da caixinha e voar longe com a fantasia que lhe trouxe um profundo senso de realidade. A aldeia nunca mais será a mesma após o compartilhamento dos relatos colhidos na floresta onde mora o espírito dito maligno (por Ronaldo Serruya), reza a lenda.
Como o espectador escuta numa das primeiras cenas, estamos diante de um espetáculo que versa sobre a arte de fazer perguntas e a dificuldade de responder a elas, principalmente por parte dos adultos. O grupo XIX e o diretor Luiz Fernando Marques asseguram a dimensão filosófica da obra enquanto costuram jogos de oposição, exploram diferentes “peles” nos figurinos e adereços e fazem disso tudo (também) um elogio à brincadeira sem infantilizar seus recursos. O núcleo de atores coloca-se no mesmo grau de atenção e disponibilidade dos trabalhos anteriores, sem facilitar o registro de cada um. O público, por sua vez, mostra-se à vontade para aderir ou não durante as passagens participativas.
Enquanto artistas acostumados a transitar por território alheio com o cuidado e a assertividade que cada situação exige, apontando perspectivas política e histórica, o XIX empresta a questões massificadas, mas que correm o risco de serem banalizadas – como o bullying –, uma abordagem mediada pela força simbólica do material cênico e da dinâmica convivial. Ambos permitem acessar mais profundamente os níveis de obscurantismo a que a sociedade tem chegado.
*Valmir Santos é jornalista, crítico e pesquisador. Idealizador e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Mestre em artes cênicas pela USP.