Por Julia Guimarães*
O que buscamos quando elegemos a realidade como matéria para a criação teatral? Em que medida essas escolhas reforçam ou subvertem a tradição do teatro? Quais efeitos projetam sobre o espectador? E como elaborar cenicamente essa transposição?
Algumas dessas perguntas poderiam ser feitas no diálogo com o espetáculo A Vida, da Cia. AntiKatártiKa Teatral, de São Paulo, dirigida por Nelson Baskerville. Apresentada nesta edição 2018 do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, a montagem é inspirada em histórias biográficas das atrizes, atores e do diretor do espetáculo.
O eixo da criação diz respeito ao jogo com a aleatoriedade. A cada noite, uma combinação diferente de histórias curtas é apresentada ao público. Com a ajuda de uma roleta, os atores sorteiam as narrativas que irão compor as cinco fases dessa vida coletiva e fragmentada retratada no espetáculo. Entre uma e outra, os atores e o diretor traçam uma síntese cronológica de suas biografias. Com a ajuda de imagens de arquivo, projetadas no fundo do palco, apresentam um relato de si que não pode durar mais de 40 segundos. Trata-se de um jogo que explicita sutilmente as correlações entre as histórias encenadas e aquelas vividas pelos integrantes da Cia. AntiKatártiKa.
Conhecido pelo trânsito no campo biográfico – sobretudo pelo premiado espetáculo Luis Antonio – Gabriela (2011), um dos primeiros a trabalhar com o viés documental no teatro brasileiro contemporâneo – o diretor Nelson Baskerville explora em cena histórias vinculadas a pequenas e grandes tragédias individuais. Mortes na família, traumas vinculados à separação ou a episódios de infância, discriminação social e abuso sexual são alguns dos temas que surgiram nas cenas sorteadas na última terça (12), no Teatro Coliseu, a partir de uma dramaturgia construída em conjunto pelo diretor e pelo elenco.
Na encenação de Baskerville, elementos característicos de suas direções anteriores aparecem na linguagem proposta. É o caso do jogo com a musicalidade, o uso de bonecos e manequins e sobretudo, a construção imagética baseada no trabalho atoral com ações e objetos – aspectos favoráveis à dinâmica fragmentada da obra. Na tela ao fundo, são também exibidas imagens documentais – como fotos e vídeos – vinculadas aos episódios narrados, o que colabora para projetar à obra certo pacto autobiográfico proposto ao espectador.
Ao conhecer histórias como a do garoto que imagina uma conversa com sua falecida mãe no interior de uma igreja – na qual aborda a culpa que sente pela sua morte – ou a do filho do zelador impedido de usar a piscina do condomínio onde mora por não pertencer à mesma classe social dos condôminos, o que surge em cena são recortes biográficos afeitos à tradição do conflito e do drama. Isso porque o olhar projetado sobre as histórias dos integrantes da companhia busca nelas justamente aquilo que a história do teatro consagrou com digno de ser levado à cena.
Tal aproximação surge ressaltada também pela encenação da montagem, que em diversas passagens explora o avesso daquilo que o nome da companhia poderia sugerir. Trilhas sonoras inseridas para intensificar a dramaticidade da cena, frases de impacto que poderiam ter sido extraídas de um melodrama, além das próprias temáticas elegidas – emolduradas por uma teatralidade que busca certo impacto espetacular – parecem ressaltar um efeito catártico no tratamento sobre a realidade.
A exceção a essa regra ocorre nas passagens em que se valoriza detalhes cotidianos a respeito dessas histórias. Eles estão presentes sobretudo nos microrrelatos das biografias do elenco, em que as cronologias tanto destacam passagens de mortes e nascimentos, mas também detalhes triviais – como a participação em um programa de televisão, o ano do primeiro beijo na boca, ou a escolha por vestir-se com a fantasia de Super-Homem no aniversário de 30 anos.
Nesse jogo com a trivialidade, ocorre não somente aquilo que o sociólogo Roland Barthes nomeou como “efeito de real” – quando se explora o chamado “pormenor concreto” da narrativa realista, capaz de criar uma “ilusão referencial” – mas também um contraponto à dramaticidade de outras passagens, além de reforçar o caráter de autenticidade que muitas vezes se busca ao transpor biografias para a cena.
A Vida. Foto: Renato Coelho
Outro efeito estético-discursivo que pode ser antevisto no jogo de valorização do cotidiano é aquele no qual se extrai do insignificante uma chave de compreensão para algum aspecto mais complexo da realidade. É o que acontece, por exemplo, na cena em que um casal, separado há dois anos, se reencontra em um supermercado e ele finge não a conhecer. Para explicitar o contrário – e expor o absurdo da situação – a atriz que supostamente vivenciou a situação lista uma série de detalhes íntimos do seu antigo companheiro, como o fato de seu filme favorito ser uma obra na qual o diretor Tim Burton homenageia as “canalhices do pai”. Por meio desses detalhes, seria possível encontrar uma chave de leitura para o comportamento do ex-marido.
No entanto, pelo curto tempo destinado ao desenvolvimento das cenas, a exploração do trivial poucas vezes supera o patamar da irrelevância. Além disso, a opção por sobrepor uma série de episódios traumáticos no decorrer de cada uma das cinco fases da dramaturgia acaba por neutralizar suas nuances. Assim, a abordagem temática não consegue extrapolar certos lugares-comuns tantas vezes reiterados pela própria tradição dramática do teatro.
O paradoxo aqui é que, simultaneamente, trata-se de uma dramaturgia que explora camadas densas da realidade sob a estrutura de uma temporalidade cênica que demanda certa rapidez e superficialidade para existir. Embora o jogo com a aleatoriedade permita não apenas a criação de uma nova dramaturgia a cada apresentação, como também o entendimento conceitual da linearidade da vida como uma construção social, trata-se de um procedimento que não favorece o aprofundamento das temáticas abordadas.
Assim, o que poderia se desenvolver como uma investigação que parte da realidade para encontrar ali vivências singulares e complexas, passíveis de oferecer um contraponto a emoções historicamente cristalizadas, acaba por reiterá-las, ao valorizar um jogo criativo com os procedimentos cênicos que não permite a intensificação da reflexividade.
*Julia Guimarães é pesquisadora, professora, crítica teatral e jornalista. É pós-doutoranda em Artes Cênicas na UFMG – onde atua como professora colaboradora – e concluiu seu doutorado na mesma área pela ECA/USP, com pesquisa em teatro contemporâneo. Integrou a equipe de críticos dos sites Horizonte da Cena (MG) e Teatrojornal (SP).