Por amilton de azevedo*
Ao entrar no espaço cênico de Del Manantial del Corazón (Do Manancial do Coração, 2015), o sincretismo religioso tão presente na cultura popular latinoamericana já se estabelece. As cruzes que circundam a área de ação são rapidamente lidas como cristãs; mas revelam-se simultaneamente elementos da religiosidade maia. A primeira cena, irônica, parece brincar com a hipocrisia de senhoras católicas. Na sequência, a fronteira entre tradições e o contemporâneo parece se desestabilizar.
A obra escrita e dirigida por Conchi León – também em cena, junto a Addy Teyer, Lourdes León e Randia Escalante – se configura enquanto acontecimento ritual. A partir de um processo de pesquisa que envolveu entrevistas com mulheres da península de Yucatán, no México, León costura três narrativas relacionadas à maternidade.
Com licença poética alinhada a uma visão crítica acerca de tradições – vinculadas ao cuidado com a mulher grávida, no parto e no cuidado da criança – sente-se confortável para inserir sutis alterações no desfecho de tais histórias. Tal delicadeza no trato dramatúrgico também é percebida na encenação.
O espetáculo estrutura-se a partir de uma inventiva simplicidade. Os objetos escolhidos para representar os bebês e crianças são ressignificados a partir do desenvolvimento das narrativas; os bancos, por meio de ações simples, constroem novos espaços e criam imagens de singela potência.
Neste sentido, o formato em arena não parece o ideal. Ainda que o espaço cênico seja circular, a obra apresenta uma inclinação à frontalidade, privando certos lugares do público de perceberem os quadros sendo elaborados. No entanto, frente ao caráter ritualístico da peça, a impressão de que se está perdendo algo por conta do ângulo que se vê é dissipada.
Não se trata de uma grande invenção estética. Na lida com a ideia de depoimentos e aproximando-se do biodrama – considerando a proximidade de León com a realidade das entrevistadas – Del Manantial del Corazón estabelece um acordo de outra ordem com seus espectadores. Trata-se de uma obra que se conecta intimamente com aqueles que assistem, tornando-os participantes de um ritual.
Foto: Iván Aguilar
No momento da cerimônia do Hetzmek, batismo presente na religiosidade maia, o espetáculo sugere tons extremamente performativos, considerando a presença real de um bebê. A naturalidade com a qual León conduz as ações desta tradição ligada a sua ancestralidade revela muito sobre as demais narrativas.
O espetáculo resgata essa conexão orgânica que muitos povos tem com suas crenças e ritos. E ao fazê-lo também problematiza o risco embutido nisso. Há de se relativizar diversos atos rituais dentro do legado cultural de cada povo, mas não se pode ignorar elementos históricos e culturais que foram determinantes para que certas tradições se estabelecessem como tal.
O grande mérito de Del Manantial del Corazón é a forma sutil com a qual estabelece um espaço ritual junto ao público ao mesmo tempo em que critica heranças patriarcais e machistas cravadas nas tradições. Aponta também, de certo modo, para a necessidade do sincretismo, além do estigma de barbárie vinculado a ritos de povos originários de América Latina na relação com religiões de origem europeia, ditas civilizadas. Como se simultaneamente ressaltasse a importância da reconexão com valores ancestrais e os iluminasse a partir de uma valoração progressista, coerente com os tempos que correm.
São, portanto, narrativas rituais sobre a vida e a morte da mulher mexicana, dialogando, a partir das antigas tradições da península de Yucatán, com a atualidade – onde, conforme afirmou León na mesa de debate Narrativas do começo do mundo: vozes da mulher, as jovens já se distanciaram de conhecimentos ancestrais. A memória da beleza – e da dureza – de rituais antigos é retrabalhada em chave crítica no que diz respeito a certos valores arcaicos.
A sacralização do nascimento e do amor materno se efetiva no trânsito entre a tradição do ritual e as circunstâncias do real. As histórias, densas, são narradas pelo elenco sem a necessidade de um complexo trabalho de construção de personagens. A impressão é de que elas estão contando as próprias histórias, representando organicamente e com visível engajamento.
Também se efetiva a poesia presente em certas liturgias, principalmente naquelas vinculadas a religiosidades populares. O já citado Hetzmek insere o público na ação ritual, e verdadeiras pérolas podem ser colhidas nesta participação. A religiosidade maia que, segundo León explica durante o batismo, enxerga a vida como caminho e a morte como regresso potencializa o caráter processual de renovação de certos rituais frente às novas possibilidades de se caminhar.
Em uma das apresentações um jovem da plateia ofereceu, simbolicamente, um molho de chaves para o bebê: “para que você abra todos os armários que quiser, quando quiser e se quiser”. O nosso contemporâneo traz a cada dia novas necessidades, reflexões e entendimentos. Mas nem por isso devemos deixar de lado sabedorias ancestrais que ainda tem sua importância.
*amilton de azevedo é artista-pesquisador, crítico e professor. escreve para a Folha de S. Paulo e para sua página, ruína acesa. responsável pela disciplina "Estudos sobre o ensino do teatro" na graduação do Célia Helena Centro de Artes e Educação.