A melodia perturbadora de Ñaña

O espírito de uma criança morta pede a um pastor que sopre a flauta feita com seus ossos, para que possa cantar a sua canção e narrar a sua história. Esse conto macabro, que aparece em meio ao enredo de Ñaña, da dramaturga e diretora peruana Claudia Tangoa, é quase a síntese da própria trama, baseada na história real de uma menina pobre do interior do Peru, que sofreu abusos sexuais e abandono familiar.

A violência é apresentada ao espectador como um choque, rápido e intenso, no início do espetáculo. Quem nos conduz por ela e pela condição terrível da vida de Elisa, que se desenrola ao longo do espetáculo, é Lucy, uma jovem mais velha, de classe média, que se torna a sua “mana” (ou, como se diz em espanhol, ñaña), depois que a garota é finalmente adotada, já quase adulta.

A promessa de um futuro mais ameno na nova família, no entanto, não se cumpre e os traumas de Elisa parecem se dilatar com o tempo. Reaparecem nas dificuldades de aprendizado na escola, nos sentimentos de inadequação da jovem, nas suas ambições pessoais ou na escolha dos homens com quem se relaciona.


Espetáculo Ñaña. Foto: Matheus José Maria

Essas situações se acumulam até que a agonia da existência de Elisa (seria melhor dizer, de Elisas) me contamina. Ficar inerte na cadeira observando aquela história se desenrolar é penoso demais. Já não tenho certeza se o meu incômodo é com a montagem, crua e simples, ou com o que ela denuncia: a cultura do estupro que nos cerca. Só sei que, desta vez, a elaboração sobre o que constitui a trama me impede de permanecer nela, porque ultrapassa aquele palco improvisado. De alguma maneira, está em todo lugar em que eu também estou, como mulher.

A própria narradora, Lucy, compartilha seu desconcerto com o público ao apresentar o desfecho dos fatos. A violência contra a mulher, naturalizada, reproduzida, perpetuada me faz aguardar o final da peça em um desespero silencioso. Sinto urgência para que, ao menos ali, o ciclo se interrompa diante de mim, mas sei que a melodia perturbadora de Ñaña me acompanhará mesmo depois dos aplausos.

Rachel Sciré, editora web do Sesc