A Desconstrução da Odisseia

Por Julia Guimarães*

Na Odisseia da Cia. Hiato, o protagonista da clássica aventura grega se desdobra em muitos. Pode ser o garoto de óculos sentado na primeira fileira da plateia, o pai ausente de uma das integrantes do grupo, o grande amor estrangeiro e não correspondido de outra, pode ser qualquer um de nós. Na perspectiva do grupo paulistano, ainda que nunca tenhamos lido o extenso poema épico escrito por Homero, provavelmente muitas das trajetórias presentes em nossas vidas tenham sofrido alguma influência do que está narrado ali.

É essa a chave que a Hiato explora para dialogar com uma das histórias mais antigas e disseminadas do mundo ocidental. Escrita por volta do século VIII a.C, relata o regresso de Odisseu (ou Ulisses, na versão romana) à ilha de Ítaca, após consagrar-se como o grande herói da Guerra de Troia. Para fazer a narrativa ecoar neste início de século XXI, a companhia utiliza um recurso que se tornou um dos pilares da sua linguagem: recorre a histórias de vida dos próprios integrantes, em diálogo com alguns dos mais famosos cantos e personagens do poema épico.

Há dois elementos na Odisseia proposta pela Hiato – cuja estreia ocorreu na Grécia, em maio deste ano, seguida por temporadas em São Paulo e no Festival Mirada, em Santos – que conferem singularidade à sua leitura. O primeiro e mais significativo ao contexto atual é a decisão de narrar essa história não do ponto de vista de seu protagonista, mas das mulheres que cruzaram seu caminho. Nas 4h30 de duração da obra, o que vemos é uma sucessão de monólogos – outra marca dos trabalhos recentes da companhia – contados sobretudo pelas personagens femininas do poema, como Calipso, Circe, Atena e Penélope, em texto assinado pelo elenco junto ao diretor do espetáculo, Leonardo Moreira.

A segunda escolha é a participação do público, projetado na obra como a figura do próprio Odisseu. A cada apresentação, somos convidados a assumir o papel do protagonista. Ler textos, guardar uma carta, filmar, encenar uma aventura, cantar, dançar e comer juntos são algumas das ações solicitadas aos espectadores. Proposição que materializa uma das máximas mais reiteradas a respeito da linguagem teatral: aquela que vê nessa arte um lugar privilegiado para o convívio em sua dimensão comunitária.    

Existe uma relação de complementariedade entre esses dois elementos – a perspectiva feminina/feminista e a projeção do público como Odisseu – que confere densidade política à Odisseia da Hiato. Pois não se trata apenas, como fez por exemplo o dramaturgo alemão Heiner Müller em seu Hamlet-Máquina, de desvelar os problemas e contradições do Ocidente a partir da desconstrução de seus mais emblemáticos personagens. Mas de fazer isso transferindo a nós, espectadores, uma fatia de responsabilidade sobre a reiteração de certas atitudes que fazem perdurar tais contradições.

Para abordar essa perspectiva, a proposta da Hiato parece ser a de eliminar hierarquias entre palco e plateia, a fim de criar proximidade e empatia. Desde a entrada, quando somos recebidos pelos integrantes do grupo como amigos ou cúmplices, servidos com água e aguardente, até a escolha por ressaltar certa dimensão cotidiana e banal das histórias de vida – com a inserção de chats de internet, áudios de celular, músicas que fazem parte da memória afetiva de muitos ali – o jogo construído pela companhia consiste em fazer da cena uma zona de continuidade com a plateia – e não de alteridade, como é mais recorrente na tradição teatral.

É nesse ambiente propício à partilha de experiências que se homenageia também, via o diálogo com a Odisseia, uma das ações mais caras à nossa cultura: o ato de contar histórias. Na versão de Homero, Telêmaco tinha apenas três meses de idade quando seu pai, Odisseu, sai para combater em Troia. Passa boa parte de sua vida em busca de notícias dele. Na versão da Hiato, Telêmaco é Aura Cunha, produtora da companhia, pela primeira vez em cena numa montagem do coletivo. Ela está no palco para nos contar a história “de um homem complicado”: seu pai.

Pelo monólogo, descobrimos que o pai foi embora de casa quando ela tinha 8 anos e nunca mais voltou. Conhecemos o retrato do clã de mulheres da sua família enquanto Aura nos pede para imaginar um jantar que fariam para falar sobre o pai, já falecido. Um jantar que poderia transmutar-se também na assembleia convocada por Atena na qual Telêmaco pede para saber mais sobre seu pai. Aqui, Odisseu não é visto como o herói que precisa ir à guerra para honrar sua pátria. E sim sob as lentes da reiterada história do pai que abandona a família por motivos diversos: para viver uma aventura, resolver uma angústia existencial, pela dificuldade em lidar com as próprias responsabilidades.

É pelas mãos de uma espectadora que temos acesso ao documento que parece sintetizar e complexizar o olhar feminino da peça: uma carta escrita em 1987 pela mãe de Aura ao pai, nunca enviada, que lhe foi entregue durante os ensaios de Odisseia. Trata-se da voz de uma Penélope às avessas que tece um apelo ético e de extrema lucidez sobre a consequência de nossas ações no mundo: “Se é vivo (...) deve ter responsabilidades de gente viva. Pra gente viva”, diz a carta, narrada pela atriz Fernanda Stefanski.

Desse primeiro golpe imputado ao Odisseu de Homero, passamos ao monólogo da atriz Luciana Paes, que gira em torno de uma dessas histórias tantas vezes contadas, para conhecidos e desconhecidos: a de um amor não correspondido. Aqui, Odisseu é também um estrangeiro, um artista chileno por quem Luciana se apaixonou em um festival de teatro na Grécia. Embora a proposta de seu monólogo seja tecer um paralelo com a história de Calipso – que se apaixona por Odisseu, com quem vive por alguns anos antes dele decidir retornar ao lar – aqui o foco não recai tanto sobre a desconstrução do herói grego, mas sobre esse acontecimento misterioso que é o amor.


Cena de Luciana Paes. Foto: Bruna Quevedo

Intercalado por músicas como Cry me a river e O quereres, cantadas pela atriz, o solo de Luciana ressalta sobretudo esse “estado de graça”, essa “epifania” vinculada ao ato de apaixonar-se. Aqui, a identificação com o público é imediata. Mas nem por isso o relato se limita aos lugares-comuns do gênero. É emblemática, por exemplo, a passagem em que Luciana se debate nua no chão do palco, embalada pela intensidade da sua paixão. Ali, é a figura da mulher desejante, que se assume como tal sem pudores, o aspecto responsável por distanciar o relato apaixonado dos imaginários femininos usualmente relacionados a ele.

É também o jogo corporal e performativo de levar uma ação ao seu limite que produz alguns dos momentos mais significativos do monólogo da atriz Maria Amélia Farah, como nas cenas de giro e de dança. Ao contrário dos relatos anteriores, aqui não é tanto a dimensão biográfica que surge em primeiro plano. E sim, a construção complexa e paradoxal da figura de Circe, a deusa-bruxa da Odisseia, ícone dos prazeres e vícios mundanos.

Nessa cena, a aproximação do espectador à figura de Odisseu adquire desdobramentos mais complexos, justamente porque explora a participação sob um viés contraditório. Na versão de Maria Amélia, Circe é uma figura do show business que converte a plateia em auditório. Nesse jogo, convida o público a performar ações associadas à perversidade e ao voyeurismo, como o ato de filmá-la nua ou dar-lhe um tapa no traseiro. “Quem é você quando ninguém te olha? Essa sou eu”.

É também a referência aos ideais colonizadores e extrativistas – pilares fundamentais da identidade ocidental, presentes na Odisseia de Homero – que aparece no relato de Circe-Maria Amélia. “Você visita uma ilha. Devasta essa ilha e quando ela está deserta, você vai embora. É assim na história”, constata a atriz, de pernas atadas a uma corda, numa perspectiva que associa o imaginário do machismo patriarcal ao do colonizador.

A crítica ao ocidente colonial está presente ainda no duplo construído pela atriz Paula Picarelli sobre a personagem da deusa Atena. Aqui, o que se coloca à prova é a própria ideia de civilização, como todo o peso de sangue derramado que ela comporta. Sob o pretexto de convencer Odisseu a encarar sua última batalha, a estrategista Atena sintetiza algumas das principais contradições vivenciadas em nome do progresso. Na qual a “maioria pacifista” pode render-se à “ética do mal menor”.

O contexto de crise que atravessa o passado e o presente do Brasil também é abordado nesse monólogo, em frases que sugerem uma resposta violenta diante de tamanha barbárie. Seja aquela vinculada aos horrores da Ditadura Militar, ao Golpe de 2016, ao lugar do racismo e do machismo no país ou da desigualdade social intensificada pela cultura dos privilégios – lugar que a atriz reconhece em si, como emblema da “filhinha de papai, branca, do Morumbi”.

No seu monólogo, a participação do espectador também explora lugares menos confortáveis e idealizados. Paula-Atena deixa uma arma na mesa e pede para que alguém do público se voluntarie a atirar nela. “Sou eu que tenho que morrer. Enquanto eu existir haverá violência. Não existe riqueza sem exploração. Por favor alguém me dá um tiro”. Pedido prontamente atendido pela espectadora que assistia à derradeira apresentação da obra na programação do Mirada 2018.

É no monólogo de Aline Filócomo que compreendemos a razão para termos sido recebidos com sopa, cachaça e karaokê no último intervalo do espetáculo. Foi essa a recepção preparada por Penélope para o nosso retorno à pátria. Se inicialmente a atriz performa uma Penélope romântica, que canta My heart will go on com a ajuda do público e vangloria Odisseu pelo sucesso da sua história no mercado editorial de todos os tempos, pouco a pouco passamos a entender não só o real significado dessa espera – através dos  5.368.000 minutos de seus áudio enviados ao celular do marido  – mas também sobre o que ela significa na vida de gerações de Penélopes resignadas a aguardar o retorno do herói ausente no confinamento do lar.

A dimensão de complexidade da perspectiva feminista adotada pelo grupo em sua leitura da Odisseia se antevê ainda pelo gesto dramatúrgico assumido no desfecho da montagem. Se a Penélope de Aline reluta em performar a ruptura definitiva com o modelo de relacionamento que sua história representa, é somente quando se abandona os personagens seculares de Homero que uma postura distinta parece lograr irromper. E ela vem do desfecho da carta de Marilena Cunha, a mesma que aparece no início do espetáculo. Por meio de suas palavras, vislumbramos um retrato geracional de mulheres fortes o suficiente tanto para lutar contra uma ditadura como também para encarar as consequências de um abandono amoroso e familiar sem repetir o mito de Penélope, em sua infindável e incerta espera de um retorno.

Ainda que o encerramento do espetáculo com o epílogo de um ator – o narrador e mestre de cerimônias Thiago Amaral – pareça reduzir a potência da perspectiva feminina assumida até então, a cena final ressalta a situação de encontro proposta ali. Sua reflexão sobre o tempo – esse que acabamos de vivenciar com nossos corpos no decorrer dos 270 minutos compartilhados ao redor daquelas histórias – é também um elogio à finitude, diante de uma obra que sobreviveu ao efeito corrosivo do esquecimento. Trata-se de um epílogo que faz pensar não somente no que a história já ergueu e fez sumir, mas sobretudo na qualidade luxuosa do tempo que passamos juntos quando estamos no teatro.

*Julia Guimarães é pesquisadora, professora, crítica teatral e jornalista. É pós-doutoranda em Artes Cênicas na UFMG – onde atua como professora colaboradora – e concluiu seu doutorado na mesma área pela ECA/USP, com pesquisa em teatro contemporâneo. Integrou as equipes de críticos dos sites Horizonte da Cena (MG) e Teatrojornal (SP).