Quando as luzes se apagam e as cortinas se levantam, o público é surpreendido por cerca de 20 corpos negros no palco do Teatro Brás Cubas. O entusiasmo vem à tona logo nas primeiras músicas, que criam uma espécie de discoteca e logo dão lugar a tradicionais tambores colombianos. Aos poucos, cada um dos dançarinos começa a se entregar à dança. São corpos negros, com um milimétrico controle de sua liberdade. Corpos que enfrentam o espaço com violência, que tomam o palco em solos e em grupos.
La Ciudad de los Otros, da companhia colombiana Sankofa, é um espetáculo coreografado por Rafael Palacios e montado no contexto da celebração dos 159 anos da abolição da escravatura em seu país.
Ao longo de quase uma hora, a corporalidade negra assume o protagonismo. São apresentações que remetem à tradição artística popular colombiana, mas também à street dance, e que bem poderiam ser contempladas em praças e ruas de Bogotá. Mas aqui, tornam-se ainda mais potentes com o jogo de luzes, a cenografia, a acústica.
Impossível não imaginar que, observados de cima, os dançarinos, nos momentos de solos ou acompanhados, parecem compor uma pintura. Uma pintura com pinceladas que ganham vida, com traços quase que sempre fortes, que deslizam para os lados, pulam, sobrepõem-se, embaralham-se, entregam-se. A tela é preenchida por braços fortes que se levantam e levantam outros corpos, pernas que rodopiam, peitos que, puxados, correm pelo chão.
A tensão é uma constante. Uma tensão por vezes violenta. A tensão dos enfrentamentos, dos rompimentos, do jogar-se, do jogar. É a tensão da dança das cidades, cenários de constantes enfrentamentos, exclusões, violências. De um constante correr, pular, sobrepor-se, embaralhar-se. É a tensão de cidades que, historicamente, receberam corpos negros com batalhas, violências, quedas, exclusões.
O corpo é o centro de tudo. O corpo em movimento, parado, em diálogo. E é nítido o controle que cada dançarino tem dele, embora, aqui, controle não seja sinônimo de rigidez. Pelo contrário. Aqui, controle é a sabedoria de até onde deixar o corpo se estender sem tirar-lhe a liberdade para deixar-se ir. É o cálculo de preencher o exato ponto do palco a que lhe pertence sem censurar seu lugar de estar livre no mundo. É o estender-se com precisão para encontrar o outro e o choque diante do encontro.
O corpo negro no palco é o corpo negro na cidade – um corpo submetido a enfrentamentos constantes, que, mesmo sob o controle do que manda a partitura, não limita sua liberdade.
Marcel Verrumo, editor web do Sesc