A bolha selvagem

Por Valmir Santos*

A coprodução chilena-alemã Nimby - Nosotros Somos los Buenos dá o que pensar a respeito da noção de comunidade e suas aspirações contrastantes.

Idealizada por quem vive social e economicamente à margem da sociedade ou por suas elites, a palavra “comunidade”, por si só, soa como música aos ouvidos. Mas não são poucos os ruídos colaterais que ela é capaz de gerar.

Via de regra, comunidade guarda significado e sensações associados ao que é bom. Evoca um lugar “cálido”, confortável, aconchegante, enfim, “tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes”, como escreve o pensador polonês Zygmunt Bauman em Comunidade: a busca por segurança no mundo atual (2001).

É dessa impossibilidade que se está a tratar. Essa espécie de paraíso perdido não tenta cavar lugar no futuro, mas no aqui e agora dos centros urbanos de qualquer parte do planeta, nos quais as disputas territoriais, logo econômicas e financeiras, avançam sobre o que é da instância do comum para delimitar o privado.

O espetáculo que envolve artistas do Colectivo Zoológico e do Theater und Orchester Heidelberg parte de um conflito real ocorrido em 2003 na localidade de Peñalolén, nas encostas próximas da Cordilheira dos Andes, região metropolitana de Santiago. Uma associação de moradores chamada Comunidade Ecológica, onde vivem centenas de famílias de classe média alta, se opõe à iniciativa do governo de construir casas populares numa ocupação em área conjugada, onde movimentos sociais lutavam havia anos por teto.

A rejeição que escancara o preconceito de classe tem a ver com posturas e mobilizações de pessoas conhecidas por nimby, corruptela da expressão inglesa not in my backyard (não na minha vizinhança ou não no meu quintal). Seu princípio é o da bolha: limitar aproximações/contaminações com cidadãos de perfis e ideias diferentes daquelas famílias cativas e cercadas ao pé da montanha, sob alegação de desvalorizar os imóveis e perturbar os proprietários.

No xadrez da dramaturgia de Juan Pablo Troncoso, tendo como dramaturgista Sonja Winkel, o episódio é amplificado às esferas intercultural e geopolítica. A entidade contrata dois especialistas alemães para mediar o conflito, recauchutar sua imagem e anunciar às autoridades e à mídia que, sim, compreende a reivindicação, mas prefere não, como um Bartleby às avessas, o personagem esquivo de Herman Melville. Casas populares são uma demanda legítima numa democracia, mas longe do meu pedaço.

A metalinguagem é irônica na ponte com os profissionais europeus desembarcados no país da América do Sul para apagar incêndios no campo dos direitos sociais sob a retórica do mundo corporativo. Os formalismos explícitos no raciocínio, na fala, no gesto e na vestimenta do homem e da mulher estrangeiros são diametralmente opostos à falta de traquejo e à ignorância do casal que está à frente da Comunidade Ecológica.

Um trabalhador da entidade, que vive na vizinhança, não é branco e tem origem indígena (possivelmente mapuche) será o ponto de inflexão nesse simulacro de boas intenções. Qual o limite da selvageria? Naqueles dias de articulação para tornar os discursos politicamente corretos, instruir qual conteúdo difundir numa entrevista coletiva – a realidade exterior é representada por meio da pressão da imprensa –, todo esse bastidor de hipocrisias é acessado pelo público. Divisamos a disputa microscópica, as idiossincrasias e o jogo de interesse de todos os lados.

Os diretores Nicolás Espinoza e Lauréne Lemaitre desvelam os mecanismos da própria representação. Os atores observam o espectador como se cúmplices numa assembleia de condomínio, um olhar confessional que também nos impele a repensar nossas ações pessoais e públicas. Em que medida alguém está disposto a atuar solidariamente ou a encarnar a pedra no meio do caminho dos outros?

Há também uma pitada de humor e autocrítica nessa parceria de artistas binacionais. Nas entrelinhas, brinca-se com a prática colonizadora dos criadores alemães do Primeiro Mundo trazendo a luz das artes cênicas aos criadores chilenos do Terceiro Mundo, para usar uma régua dos tempos da Guerra Fria, distinguindo países subdesenvolvido e em desenvolvimento daqueles de economia mais robusta.

Pois Nimby - Nosotros Somos los Buenos não padece de subalternidade. Sua equipe inspira autonomia artística ao entregar uma história sintomática do cada um por si do sistema econômico neoliberal. Por outro lado, a denúncia vem através da rigorosidade das atuações e dos personagens falhos e extremamente cativantes – de novo, com toda a complexidade que o verbo cativar desperta em sujeitar-se, reter, seduzir, enamorar-se.

A propósito, esse trabalho pode ser lido como o extremo da discórdia que a ficção planta entre os seres da aldeia e os seres do bosque no espetáculo infantil Hoje o Escuro Vai Atrasar Para Que Possamos Conversar, do Grupo XIX de Teatro, neste mesmo Mirada. O esgarçamento do humano, este sim, tem sido perturbador.

*Valmir Santos é jornalista, crítico e pesquisador. Idealizador e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Mestre em artes cênicas pela USP.